O juiz de Direito do TJRJ e escritor Rubens Casara está lançando o livro “A construção do idiota: o processo de idiossubjetivação” (editora Da Vinci), e falou com exclusividade ao programa Fórum Onze e Meia na TV Fórum. Casara discorre sobre como a tradição autoritária do Brasil abriu caminho para a eleição de Jair Bolsonaro e por que a esquerda tem perdido espaço na juventude. Casara aponta caminhos para a disputa do imaginário contra uma racionalidade que produz sujeitos egoístas e funcionais ao neoliberalismo, que ele denomina de “idiotas”. Confira os principais trechos da entrevista, que pode ser assistida aqui.
Sergio Moro e Lava Jato
Muito antes de viralizarem as conversas ilegítimas trocadas entre acusadores e juízes, já havia um certo consenso entre quem olhava para o fenômeno Lava Jato, de que aquilo estava muito errado, que, a pretexto de combater a corrupção, o que tínhamos, em concreto, era a corrupção de regras, princípios e valores democráticos republicanos.
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Essa criação de um instituto para receber o dinheiro que não foi produzido, não foi pensado para esse instituto, que é um dinheiro de todos nós, da Petrobrás, é um absurdo, é um escárnio.
E o que me deixa mais chocado é que eu tenho dúvidas se eles conseguem ter a dimensão da ilegalidade que praticaram. Vendo algumas mensagens que acabaram vazadas, é possível perceber que alguns membros dessa Lava Jato, por Lava Jato eu estou chamando essa marca que a grande mídia corporativa ajudou a criar, acreditavam de fato que eram pessoas iluminadas que estavam ali produzindo algo positivo para a sociedade.
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Fico me perguntando se, em algum momento, eles tiveram aquela pausa reflexiva para ter ciência da dimensão da merda que estavam fazendo.
Revolução Bolsonarista
Eu tenho defendido a tese de que o Bolsonarismo, lembrando que não se confunde com a figura do Jair Bolsonaro, foi uma tentativa de uma espécie de revolução cultural, que tinha algumas características.
A principal delas é essa ilimitação, esse vale-tudo na busca do interesse pessoal. E é justamente esse vale-tudo que unia tanto o projeto político bolsonarista quanto o projeto político e jurídico de figuras como Sérgio Moro, que hoje estamos discutindo nesses processos, nessas atividades estatais voltadas à identificação de ilícitos e à punição de pessoas que realmente passaram a acreditar que podiam tudo, em uma sociedade como a nossa.
Se o Estado democrático de direito se caracteriza pela existência de limites rígidos ao exercício de qualquer poder, essa turma acreditava que poderia fazer qualquer coisa utilizando o Estado como um instrumento para seus desejos mais obscuros, para seus desejos pessoais, seus desejos de enriquecimento e de busca por lucro, tanto econômico quanto político.
"A construção do idiota”
Eu tinha uma pergunta, que era: como tanta gente passou a defender posições absurdas, absurdo aqui no sentido daquilo que não é explicável em princípio, que não é racional.
E aí eu fui resgatar a origem da palavra idiota, que vem da Grécia. O idiota é aquela pessoa incapaz de fazer nexo à coletividade, incapaz de reconhecer a importância do comum, ídio, né? Significa privado no grego.
O idiota é aquela pessoa fechada em si e principalmente fechada para o outro do conhecimento, que o assusta, e para o outro da diversidade, que ele não consegue compreender.
Eu percebi que esse sujeito funcional, esse sujeito útil à atual fase do capitalismo, sujeito útil ao neoliberalismo, é esse idiota. É uma pessoa incapaz de reflexão crítica, é uma pessoa que acredita que não há alternativas àquilo que é colocado diante dele.
Quando eu falo incapaz de reflexão crítica, ele é incapaz de duas coisas. Primeiro, de diagnósticos precisos da realidade, de entender o que está acontecendo. E porque ele não entende o que está acontecendo, ele não se revolta e nem toma atitudes em sentido contrário.
Mas, além disso, ele é incapaz de aquilo que ele sabe, aquilo que ele conhece, num sentido emancipador, num sentido de superação das múltiplas opressões a que a sociedade brasileira está submetida.
Ele acha que essas opressões são naturais, sempre foram assim e vão continuar sendo assim. Isso leva a essa inércia bovina desse sujeito neoliberal que eu estou chamando aqui de idiota. O processo de idiossubjetivação seria justamente esse processo de construção desse sujeito bovino, desse sujeito tipicamente adequado à racionalidade neoliberal.
E esse processo passa por uma mutação no sentido dos fenômenos, no sentido das palavras. Se altera o que significa a verdade, se altera o que significa a justiça, se altera o que significa a beleza, se altera o que é o bem.
Nós começamos a ter pessoas na sociedade que falam uma linguagem, um idioma diferente de outras pessoas, a partir de formações, de formatações distintas. A palavra sujeito está intimamente ligada à ideia de uma espécie de sujeição.
A questão é que tipo de sujeição estamos querendo para esses sujeitos. Pelo convencimento, pelo conhecimento ou pela ignorância, pelo uso da força. Pela ciência ou pelo mito.
São essas as questões que estou discutindo nesse livro, de como se formatou um tipo de sujeito que aceita aquilo que deveria ser tido como inaceitável.
Racionalidade neoliberal
O que estou chamando de racionalidade neoliberal? Um certo modo de ver e atuar no mundo que trata tudo e todos como objetos negociáveis, quando têm algum tipo de utilidade, ou como objetos descartáveis, a partir de cálculos de interesse que visam lucro e obtenção de vantagens pessoais.
Me parece, Felipe, que em dado momento, o neoliberal progressista, PSDB para utilizar aqui um nome que dá bem essa ideia, o Fernando Henrique Cardoso. O neoliberal civilizado, aquele neoliberal ainda com algumas preocupações da esfera democrática, perdeu a capacidade de produzir votos e conseguir vitórias.
Com isso, a racionalidade neoliberal passa a escolher um outro combatente e, no caso brasileiro, é um combatente que vai ao encontro da tradição autoritária brasileira. Essa crença no uso da força para resolver os mais variados problemas sociais, uma certa desconfiança dos intelectuais, uma certa desconfiança do conhecimento, uma postura anti-intelectual que é típica da sociedade brasileira.
Então, aquelas características, por exemplo, que encontramos nos estudos sobre a personalidade autoritária, que Adorno elaborou logo após a Segunda Guerra Mundial, vamos encontrar aquelas características da personalidade autoritária muito presentes na sociedade brasileira.
Por exemplo, uma espécie de sadomasoquismo. As pessoas são sádicas com quem consideram inferiores, ao mesmo tempo que são submissas com quem consideram superiores. Uma anti-introspecção, ou seja, tudo aquilo que é da ordem do sensível, da ordem da imaginação, é mal visto por ampla parcela da sociedade brasileira.
Em uma sociedade autoritária, a tocha do neoliberalismo foi melhor conduzida por uma pessoa como Jair Bolsonaro. Uma pessoa que toca diretamente essa natureza autoritária da sociedade brasileira.
Marilena Chauí, há mais de 30 anos, escreveu um livro no qual aponta que o mito fundador da sociedade brasileira é o mito autoritário, e que nunca tivemos efetivos processos de ruptura democratizante em relação a essa origem autoritária da sociedade brasileira.
Então, me parece que o Fernando Henrique não era mais páreo, ou um personagem como o Fernando Henrique não era mais alguém que poderia ser útil para a manutenção do projeto neoliberal. Então, vem o neoliberal ultra-autoritário, como Jair Bolsonaro.
O que não impede que agora se tente novamente um neoliberal progressista para poder manter a política e a racionalidade neoliberal como hegemônica dentro do governo. Isso é uma coisa genial, porque eles vão se substituindo.
Você pega o Trump, o neoliberal ultra-autoritário, ele é substituído pelo Biden, porque o Biden vai dizer que os problemas da sociedade norte-americana são gerados pelo autoritarismo do Trump. Depois, o Trump vai substituir o Biden dizendo que os problemas da sociedade americana são causados pelo progressismo do Biden, quando na realidade os problemas da sociedade americana, o que gera o medo, o ódio, o ressentimento utilizado pela extrema direita, são causados pelo funcionamento normal do modelo neoliberal, que tira empregos, precariza as condições de vida, faz com que a lógica da concorrência passe a regular todas as relações, inclusive as mais íntimas. O outro não é mais visto como um companheiro na luta pela transformação da sociedade, é sempre visto como um concorrente a ser vencido, quando não um inimigo a ser destruído, eliminado.
Isso rompe a própria ideia de laço social. O neoliberalismo produz tragédias e os neoliberais vão tentando se manter no poder político, atribuindo as tragédias do neoliberalismo não ao neoliberalismo, mas ou ao autoritarismo de uma figura como Trump ou ao progressismo de uma figura como Biden.
Extrema direita na Europa
São várias questões interessantes que a sua pergunta coloca. Porque, por um lado, temos que hoje quem se apresenta como uma força transformadora da sociedade não é a esquerda, é a extrema direita. É um dado.
Outro dado importante é que essa eleição do Parlamento Europeu é bem diferente, ela tem uma lógica muito distinta das eleições para cada país da Europa. Porque a comunidade europeia, na realidade, é uma comunidade para os negócios.
Então, você tem esse voto de revolta contra a lógica neoliberal que pode ser dado tranquilamente a um candidato de extrema direita, porque esse pessoal, apesar de político, apesar de dentro do sistema, se apresenta como antipolítico, como antissistema.
Um terceiro dado importante é que esse resultado está intimamente ligado à perda da esperança na esquerda. É uma esquerda fragmentada, é uma esquerda que não raro, por exemplo, no caso francês, o Partido Socialista aderiu à racionalidade neoliberal.
Eles foram lá um típico exemplo do neoliberalismo progressista. Então, tudo isso fez com que as pessoas perdessem a esperança em um projeto de esquerda transformador da sociedade e superador dos múltiplos problemas. Acho que o Macron, quando dissolve, por exemplo, o parlamento, faz uma aposta, mas uma aposta que passava pela incapacidade das esquerdas se unirem e atuarem a partir de princípios, de regras e de valores democratizantes, de valores típicos da esquerda. Porque ultimamente a esquerda estava atuando a partir de cálculos de interesse, tal qual os neoliberais. Só que parece que o Macron não contava, pelo menos as últimas notícias que temos recebido da França, por exemplo, que as esquerdas vão se unir. O Partido Socialista, o Partido Comunista, a França Insubmissa, os verdes, todos eles vão fazer uma campanha unitária e isso pode efetivamente mudar a cara da política na França e, por consequência, representar uma esperança de mudança nos rumos políticos em toda a Europa.
Porque, percebam, a extrema direita cresceu, a direita republicana, democrática praticamente desaparece, mas também vemos em alguns países o crescimento da esquerda, como por exemplo naquele bloco nórdico.
O jogo não está ganho, embora a racionalidade neoliberal tente nos convencer que não há alternativas possíveis ao que é dado, ao que está aí. Mas acho que há um campo de disputa e me parece que as esquerdas na França é um passo importante no sentido de superação dessa estagnação das esquerdas.
Linguagem sequestrada pela extrema direita
Basicamente esse é o tema do livro: como vai sendo produzido um novo sujeito. E por que a questão da linguagem se torna fundamental? Quando a pessoa nasce, ela é lançada na linguagem. Essa linguagem sempre antecipa sentidos. E são esses sentidos que vamos percebendo ao longo da nossa vida que nos constituem enquanto sujeitos.
Quando os sentidos são modificados, e essa modificação ou manipulação dos sentidos é possível de ser feita através da manipulação humana, criamos um novo sujeito que atende a um determinado fim político.
Eu cito bastante o livro do Victor Klemperer nesse meu trabalho, mas queria dar um outro exemplo que talvez fique mais evidente: a mutação simbólica, a mutação valorativa do egoísmo.
O egoísmo, na tradição cristã ou mesmo antes dela, na Grécia e em Roma, sempre foi percebido como um vício, uma negatividade. A partir da hegemonia da racionalidade neoliberal, que vai produzir essa mutação de sentido, o egoísta passa a ser visto como um vitorioso, o egoísmo passa a ser uma positividade.
Por quê? Porque o egoísta leva vantagem na luta concorrencial. Se o sujeito para para ajudar quem está do lado, ele leva uma desvantagem na corrida frente a um objetivo, no caso, um objetivo tipicamente neoliberal, que é algum tipo de vantagem pessoal, algum tipo de lucro.
Por outro lado, a fraternidade, a solidariedade passaram a ser vistas como negatividades. O cara solidário é o cara bobo, que perde espaço na luta concorrencial. E esse novo sujeito, que estou chamando de sujeito idiotizado, é formatado para não criar obstáculos aos negócios do detentor do poder econômico, para não incomodar os negócios.
E ele é formatado através desse processo de mutação, algo que, como você percebeu, também já estava presente na Alemanha nazista. Então, é nesse sentido também que trato o bolsonarismo como uma tentativa de revolução cultural, tal qual aquela tentativa de revolução cultural nazista que se deu na Alemanha, sob a égide desse projeto encabeçado por Hitler.
Outro mundo possível
Nós não estamos conseguindo produzir imagens de um outro mundo possível que se tornem atrativas a esse jovem que cede a essa tentação da facilidade da extrema direita. Uma das características ou um dos objetivos dessas técnicas de idiossubjetivação é um profundo empobrecimento do imaginário. Em termos políticos, acredita-se que não há alternativa possível ao que está posto.
Por quê? Porque estamos incapazes de produzir imagens de uma outra sociedade e ideias a partir dessas imagens que se tornem atrativas para essa juventude, que você muito bem, Renato, mencionou, que hoje fica seduzida por respostas fáceis para problemas complexos.
As respostas da extrema direita são extremamente fáceis. Elas trabalham, como o Filipe mencionou há pouco, com dicotomias. O bem, o mal, o certo e o errado, os amigos e os inimigos. As pessoas são levadas cada vez mais a desconfiar da complexidade.
Percebam, existe uma simplicidade que é saudável, que é importante. Conseguir explicar coisas complexas de maneira simples é algo positivo. Mas muitas vezes há uma simplicidade excessiva que impede a compreensão do problema.
Nunca vamos conseguir, com respostas extremamente simples, resolver problemas extremamente complexos. Temos que disputar esses imaginários. Disputar o imaginário significa, em certo sentido, resgatar a potência política da esquerda.
O que presenciamos hoje em todo o mundo é uma esquerda impotente. É uma esquerda incapaz de produzir mudanças, inclusive no imaginário. As pessoas hoje percebem a esquerda como defensora da ordem.
Como defensora da democracia que está aí. Que pouco tem de democracia. Não é um governo do povo para o povo e pelo povo. É um governo, normalmente, dos representantes das grandes corporações. Quando não, do próprio titular do poder econômico. Essa é uma característica dos tempos atuais.
Há uma reaproximação pornográfica entre poder político e poder econômico. Não raro, o titular do poder econômico exerce diretamente o poder político. O Trump, talvez, seja o exemplo mais evidente. Berlusconi, são vários. O cara que tem o dinheiro exerce também o poder político.
Isso produz uma mudança gigantesca. Por exemplo, no campo da corrupção. Como é a corrupção tradicional? O cara que tem o dinheiro vai lá no cara que tem o poder político e dá o dinheiro para o cara do poder político fazer o que o cara do poder econômico quer. O titular do poder econômico exerce diretamente o poder político, não tem nem a mediação do dinheiro.
Fica muito mais difícil de identificar a corrupção. A corrupção que a gente fala hoje, normalmente, é aquilo que os assessores chamam de corrupção do tolo. Porque a verdadeira corrupção está no fato do detentor do poder econômico exercer diretamente o poder político ou comprar os seus representantes para que exerçam o poder político de uma maneira que é muito mais difícil de ser detectada.
E quando a esquerda passa a defender a ordem, ela está defendendo essa união de poder político e de poder econômico. Está defendendo essa relativização dos direitos e garantias fundamentais da maioria da população em nome do lucro de 1% a 3% da população mundial.
Então, como conquistar o jovem? Temos que recolocar o jovem no jogo político a partir de um novo imaginário. Ou seja, temos que produzir um imaginário alternativo, um outro mundo possível, para que esse jovem compreenda que a única solução não vai ser essa solução fácil, essa solução imediata, que em pouco tempo ele percebe que não funciona.
Temos que produzir, numa palavra que está meio fora de moda, contra-hegemonia. Se a hegemonia da racionalidade neoliberal produz idiotas, temos que produzir uma outra hegemonia que seja capaz, por exemplo, de resgatar o que tenho chamado de esfera do inegociável.
Se a racionalidade neoliberal diz que tudo e todos são negociáveis, nós temos que resgatar uma esfera do inegociável. As pessoas não podem continuar sendo tratadas como objeto ou como instrumentos para o lucro ou a satisfação de outras pessoas. Temos que resgatar a esfera do inegociável para que a verdade não seja mais negociável, para que não precisemos relativizar a verdade o tempo todo com o objetivo político.
Então, acho que é nessa disputa do imaginário que está o desafio. Programas como o de vocês aqui são fundamentais para colocar a semente da necessidade de se pensar mais.
Eu trabalho nesse livro com a ideia de que existem dois verbos que são revolucionários: amar e pensar. Então, é pensar dentro de uma perspectiva crítica, de uma chave crítica, pensar com o objetivo de transformar a sociedade, para compreender os problemas. Só compreendendo os problemas e identificando-os, conseguiremos superá-los, e amar.
Amar no sentido de uma abertura radical ao outro, ao outro com todos os seus problemas. A idiossubjetivação faz com que pensemos na pessoa como boazinha ou má. Não é assim. Isso faz, por exemplo, Felipe, um ex-casal, a mulher é a melhor pessoa do mundo, aí se separa, vira uma víbora.
Óbvio que não é assim que funciona. Amar como o conteúdo de uma política individual. Abrir-se para o outro, amar sem a necessidade de exigir que o outro te ame também. Abrir-se para o outro do conhecimento, voltar a amar o conhecimento.
Hoje, a pessoa que fica lendo é apontada na rua: "Olha que cara esquisito, está lendo, não está mexendo no celular, não está vendo televisão." Então, também resgatar esse amor ao conhecimento. E o amor à diversidade. Abrir-se para aquilo que você não compreende, mas que tem que respeitar.
Acho que o caminho para trazer esse jovem para a esquerda, para resgatar a potência política da esquerda, está muito nessa luta pelo imaginário que a esquerda atual abriu mão de fazer.
O mundo do comum
Eu acho que uma coisa é fundamental: desdemonizar a ideia de comum. O que a racionalidade neoliberal fez nos últimos 40, 50 anos é demonizar o comum. O que é o comum? O comum é aquilo que diz respeito a todos nós pelo simples fato de termos nascido com vida.
Nós somos, ao mesmo tempo, constituintes, nós constituímos constantemente o comum, e responsáveis pela manutenção desse comum. O Laval e o Dardot, nesse livro "O Comum, na Revolução do século XXI", propõem a racionalidade do comum como essa racionalidade que aceita essa esfera do inegociável e que seria a base para se produzir essa contra-hegemonia a que me referi.
É uma opção, não é a única. Existe a racionalidade ecológica da Mãe Terra, da Pachamama, como a casa comum de todos nós, o que produziria uma mudança na compreensão de economia. Existem outras racionalidades que podem ocupar o espaço da racionalidade neoliberal.
Todas essas outras racionalidades apontadas por pensadores progressistas têm em comum a necessidade de autorizar o pensamento. Um pensamento que foi sonegado, um pensamento que está interditado.
Temos que lutar contra esse vazio do pensamento, que é também um vazio existencial. Esse vazio existencial está fazendo com que as pessoas fiquem doentes, deprimidas, com burnout, porque acreditam no discurso da meritocracia: "Se você se esforçar, você consegue", que é balela, que é historinha para boi dormir.
Mas por acreditar, por estarem inseridas nesse processo de idiossubjetivação, essas pessoas estão ficando doentes. Temos que propor alternativas. A hipótese do Christian Laval e do Pierre Dardot me parece uma boa hipótese.
Como também, por exemplo, o resgate da hipótese comunista sugerido pelo Badiou. O que ele diz? Ora, o comunismo teve vários defeitos.
Só que quando erramos, o correto é ver o momento em que se errou e tomar outro rumo. Não significa a necessidade de abandonar a hipótese. Afinal de contas, o capitalismo erra o tempo todo, produz mortes o tempo todo, e está aí, como se fosse a última bolacha do pacote, a última esperança da sociedade.
Temos que pensar em outro mundo possível. Como será constituído esse outro mundo possível? Tem a hipótese do comum, tem a hipótese de um novo comunismo que se afaste dos erros das experiências históricas, tem a hipótese ecológica.
Ou podemos fazer um mix disso tudo e criar nossa hipótese de transformação da sociedade a partir da periferia, a partir da América Latina, a partir do Brasil. Temos que investir em jornalismo não corporativo, temos que investir novamente no pensamento crítico que está tão demonizado, tão esquecido.
Temos que insistir no diálogo, e o diálogo exige reciprocidade, posições iguais. E a lógica concorrencial impede essa reciprocidade necessária ao diálogo. Então o caminho é longo, mas acho que faço uma análise pessimista, mas estou otimista em relação ao futuro.