CHINA EM FOCO

Neoliberalismo é o cerne do atual duelo entre China e Estados Unidos

Para além de disputas de visão de mundo, a nova Guerra Fria deflagrada por Washington contra Pequim tem como base histórica o modelo de gestão capitalista implantado no início dos anos 1990

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A conta do Consenso de Washington chegou a Washington. O arcabouço político e econômico que estabeleceu um modo mais selvagem de capitalismo nos anos 1990, o neoliberalismo, entregou sua fatura à maior economia do mundo: quatro décadas de desindustrialização e gargalos de infraestrutura.

Esse desequilíbrio deflagrou um duelo de gigantes entre China e Estados Unidos, as duas maiores economias mundiais, que vai além de debates sobre visão de mundo. Está relacionado à busca por domínio de mercado e competitividade, que passa por industrialização, infraestrutura e geração de empregos.

No último domingo (21), a secretária do Departamento de Comércio dos EUA, Gina Raimondo, concedeu uma entrevista ao programa 60 Minutes, da rede estadunidense CBS, na qual contextualiza, sob o ponto de vista de Washington, a guerra contra Pequim.

"Permitimos que a manufatura neste país se enfraquecesse em busca de mão de obra mais barata na Ásia, capital mais barato na Ásia, e aqui estamos. Apenas buscamos o lucro em detrimento da segurança nacional", observou a secretária à jornalista Lesley Stahl.

O feitiço se voltou contra o feiticeiro

Não foi uma força da natureza que desmontou a indústria dos EUA. Foi uma decisão política, o Neoliberalismo. Em 1989, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos lançaram um pacote de medidas para acarinhar o capitalismo, o Consenso de Washington.

As 10 medidas de austeridade desconsideram os impactos sociais, a redução da desigualdade e a sustentabilidade. As políticas do Consenso de Washington focavam principalmente na liberalização econômica e incluíam:

  1. Disciplina Fiscal: Reduzir o déficit do governo para evitar a inflação.
  2. Corte de Gasto Público: Reduzir os subsídios e aumentar os gastos em áreas como educação, saúde e infraestrutura.
  3. Reforma Tributária: Ampliar a base tributária e reduzir as taxas marginais de impostos.
  4. Liberalização Financeira: Eliminar restrições ao ingresso de capital estrangeiro e liberalizar os sistemas bancários internos.
  5. Taxa de Câmbio Competitiva: Manter uma taxa de câmbio que facilitasse o crescimento das exportações.
  6. Liberalização do Comércio: Reduzir barreiras ao comércio, como tarifas e quotas.
  7. Investimento Estrangeiro Direto: Encorajar o investimento estrangeiro direto.
  8. Privatização: Privatizar empresas estatais.
  9. Desregulamentação: Reduzir a regulação excessiva que impede a entrada de empresas no mercado.
  10. Propriedade dos Direitos Legais: Garantir a proteção legal dos direitos de propriedade. 

Agora, a maior economia do planeta sente o golpe - nos países pobres os efeitos nefastos do neoliberalismo já são sentidos há muito tempo, com o aumento das desigualdades e da pobreza e a sede feroz por lucro do capitalismo financeiro turbinado neste modelo de capitalismo.

China nunca aderiu ao Consenso de Washington

O mais curioso é que a China nunca aderiu ao Consenso de Washington, mas se beneficiou dele. Embora a potência asiática tenha adotado algumas políticas econômicas de mercado desde o final dos anos 1970, ela não seguiu estritamente o modelo neoliberal promovido pelo a acordo ultraliberal liderado pelos EUA.

Em vez disso, a China implementou uma abordagem gradualista e pragmática para a reforma econômica, mantendo um forte controle estatal sobre setores-chave da economia, como o setor financeiro e as empresas estatais. Essa abordagem resultou no socialismo com características chinesas. A China não aderiu ao Consenso de Washington, mas desenvolveu seu próprio modelo econômico.

Antes tarde do que nunca

Os EUA, na tentativa de reverter o cenário que ele mesmo forjou, lançam uma sucessão de medidas durante a atual administração de Joe Biden. Uma delas foi anunciada nesta segunda-feira (22): o início da construção da primeira ferrovia de alta velocidade do país

A Brightline West vai conectar Las Vegas, Nevada, a Los Angeles e ao sul da Califórnia e terá 218 milhas de extensão, o equivalente a cerca de 350,8 quilômetros. 

Os trens vão circular a uma velocidade de 200 milhas por hora, cerca de 321,87 quilômetros por hora. A estimativa é que leve quatro anos para ser construída.

O projeto de US$ 12 bilhões está em desenvolvimento em alguma forma desde 2005, e sob a responsabilidade da empresa Brightline desde 2018. 

Vai levar tempo para que os EUA alcancem a malha ferroviária de alta velocidade da China, que atualmente é de 45 mil quilômetros. 

Disparidade entre políticas industriais

Não se trata apenas de trens de alta velocidade. Há uma disparidade gritante entre as políticas industriais de Washington e de Pequim. É o que mostra um dos principais jornais dos EUA, The New York Times, que no dia 18 de abril publicou uma matéria na qual compara as políticas industriais das duas potências. 

Intitulado "Chinese Exports Are Threatening Biden’s Industrial Agenda" ("As exportações chinesas estão ameaçando a agenda industrial de Biden", em tradução livre) o texto destaca que o governo chinês investiu pesadamente na indústria verde, incluindo a oferta de empréstimos atrativos de bancos estatais a empresas que poderiam não ter sobrevivido de outra forma, para ajudar a compensar uma crise imobiliária e o consumo doméstico lento. 

Excesso de capacidade

Um novo mantra da administração Biden na batalha contra a China é atacar a produção chinesa por "excesso de capacidade". Esse discurso foi entoado pela secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, durante visita à China entre os dias 4 e 9 de abril. 

A fala de Yellen está totalmente sintonizada com a retórica exagerada de Washington a respeito desse tema, com foco no setor de energia limpa, especialmente em veículos elétricos, baterias de lítio e células solares.

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No caso do setor de carros elétricos chinês, os veículos puramente elétricos representam mais de 70% das vendas da China. Em 2023, a produção e as vendas dessa categoria de veículos em todo o país asiático foram de 9,587 milhões e 9,495 milhões de unidades, respectivamente, representando ambos mais de 60% do total global.

A produção chinesa foi apenas um pouco maior que o número de vendas, por uma pequena margem de menos de 100 mil unidades. Dado o grande volume de oferta e demanda, uma margem tão pequena é bastante normal. Ou seja, não há supercapacidade.

Guerra dos Chips

Nos últimos anos, a administração  Biden tem enfatizado a necessidade de manter a dominância dos EUA em alta tecnologia, especialmente no campo de semicondutores. Por isso tem adotado medidas extremas para conter o avanço da China na tecnologia de chips.

Em artigo publicado nesta quarta-feira (24) no jornal estatal chinês que circula em inglês, o Global Times, o editor sênior do Diário do Povo, principal veículo do Partido Comunista Chinês (PCCh), Ding Gang, pontua que essas medidas de Washington não são capazes de suprimir a China no segmento de manufatura de médio a baixo prazo para sempre.

No texto intitulado "US reindustrialization hinges on institutional guarantees" ("A reindustrialização dos EUA depende de garantias institucionais", em tradução livre), Ding pondera que mesmo que Biden tenha expressado um compromisso em priorizar o desenvolvimento da infraestrutura e tenha alocado uma enorme quantidade de fundos para isso, a construção de infraestrutura ainda está progredindo em um ritmo lento.

"Por que o ritmo e a escala da manufatura chinesa estão se expandindo globalmente? Ela acumulou impulso suficiente para alcançar uma etapa de avanço. Isso não se trata de capacidade industrial excessiva, mas de uma atualização industrial abrangente e do apoio total de um sistema avançado de infraestrutura que desafia as capacidades de fabricação ocidentais", observa.

Ding, que também é pesquisador do Instituto Chongyang de Estudos Financeiros da Universidade Renmin da China, comenta ainda que confiar apenas na liderança em alta tecnologia não é suficiente para a reindustrialização e, a longo prazo, não pode competir com a manufatura chinesa.

O pesquisador observa ainda que um dos principais mal-entendidos dos EUA e da Europa está em seu fracasso em conectar a produção "Made-in-China" com o rápido desenvolvimento da infraestrutura na China.

"A abordagem bem-sucedida dos chineses inclui uma logística altamente eficiente, a integração dos principais sistemas de produtos, a expansão das redes urbanas para todos os cantos do país, o rápido avanço da tecnologia de veículos elétricos e a presença de postos de carregamento em todos os lugares, todos relacionados à infraestrutura", elenca Ding.

O artigo de Ding avalia que a reindustrialização não pode ser alcançada apenas com alguns chips avançados e tecnologia de inteligência artificial. 

"Em última análise, o desenvolvimento da IA depende da geração suficiente de eletricidade. Esta é uma das razões pelas quais os EUA não podem manter suas principais indústrias sem serem afetados apenas pelo protecionismo", ressalta Ding.

Ele questiona ainda se as políticas e estratégias elaboradas pelos EUA e aliados contra a China realmente compreendem a situação atual no país ou envolvem alguma investigação no local. 

"Provavelmente, elas dependem da especulação de relatórios de escritório. As autoridades estadunidenses raramente fazem referência aos 'Planos Quinquenais' da China, que são parte integrante do sucesso da infraestrutura chinesa, ao discutir a competição com o país", afirma Ding.

Próximos rounds do duelo de gigantes

Washington reconhece que, mesmo com um plano para desenvolver a infraestrutura tão vigorosamente quanto a China, a implementação pode não ser viável sem reformas no sistema.

Por exemplo, no dia 26 de março deste ano, um acidente de enormes proporções foi registrado em Baltimore, nos EUA, no estado de Maryland. Um navio de carga gigantesco se chocou com um dos pilares da ponte Francis Scott Key, que cruza o rio Patapsco. Na sequência da tragédia teve início um debate sobre se os reparos levariam dois, cinco ou até 10 anos. Ainda não há uma estimativa oficial.

Uma situação similar ocorreu na China em 2015. Pequim fez um projeto completo de substituição do feixe principal na Ponte Sanyuan, uma das maiores e mais movimentadas da cidade, que estava em serviço há 40 anos. Surpreendentemente, o projeto foi concluído em apenas 43 horas, do início ao fim.

É inegável que, se os Estados Unidos realmente pretendem alcançar a reindustrialização, a questão crucial não é apenas sobre dinheiro. O país tem recursos abundantes. O verdadeiro desafio está em garantir uma melhoria mais rápida da infraestrutura por meio de reformas institucionais.

Mas a realidade é que à medida que os Estados Unidos perdem competitividade, o protecionismo comercial emerge como uma resposta inevitável. E a China segue resiliente e determinada sua longa marcha para o desenvolvimento.