Um relatório produzido pela Subsecretaria de Inteligência do Distrito Federal no dia 6 de janeiro de 2023 e que circulou apenas internamente no governo Ibaneis Rocha (MDB) previu os atos golpistas de apoiadores de Jair Bolsonaro (PL) que aconteceriam dois dias depois e destruiu as sedes do Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal (STF) e o Palácio do Planalto.
O órgão, então comandado por Marília Ferreira de Alencar, é subordinado à Secretaria de Segurança Pública (SSP) do DF, para onde havia sido alçado o ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, Anderson Torres.
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O documento a que a Fórum teve acesso consta no relatório feito pela Polícia Federal (PF) sobre a participação das autoridades do DF sobre o golpe e fala claramente da intenção dos bolsonaristas em "sitiar Brasília" para desencadeamento do golpe.
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"Importa destacar que em transmissão realizada ao vivo, em rede social, houve destaque para manifestações a partir do dia 07JAN23, com participação de milhares de pessoas e vinda de caravanas", diz o texto, que não foi repassado aos órgãos de segurança do governo Lula.
"Assinala-se ainda grupo de mensagem, no qual os integrantes seriam pessoas conhecidas por CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores) e com postagens sobre 'sitiar Brasília e que denotam a intenção da prática de atos de violência no dia 08JAN23", segue o relatório, prevendo o que aconteceria dois dias depois na Praça dos Três Poderes.
Segundo o documento, a convocação distribuída entre os bolsonaristas era intitulada como "Tomada de Poder pelo povo" e "ocorreria, principalmente com a invasão ao Congresso Nacional".
"Entre os organizadores da manifestação estariam integrantes de grupos autodenominados de patriotas, além dos segmentos do agronegócio e caminhoneiros", diz o texto.
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Torres não leu
Segundo o relatório, antecipado pelo colunista Cleber Lourenço, "o ponto central das falhas da gestão da segurança pública durante os eventos de 05/01/2023 é a existência do Relatório de Inteligência nº 06/2023, elaborado pela Subsecretaria de Inteligência da SSP/DF".
"Tal documento, que foi entregue a Anderson Gustavo Torres em 06 de janeiro informava quanto ao risco de manifestações violentas e a possibilidade de invasões a prédios públicos. Referido documento, aparentemente, não foi considerado por Anderson Torres, que apesar das advertências, prosseguiu sua viagem ao exterior sem tomar as providências necessárias. Adicionalmente, a subsecretaria de Inteligência não difundiu de forma eficaz o conteúdo do relatório para os demais órgãos de segurança", diz a PF.
Mais adiante, a PF afirma que, em depoimento à CPI da Câmara Legislativa do DF, Torres afirmou não ter sequer lido o documento antes de viajar aos EUA, onde teria se encontrado com Bolsonaro. Aos investigadores, no entanto, ele negou que tenha se encontrado com o ex-chefe.
"Ao ser confrontado pela CPI da Câmara Legislativa do Distrito Federal, ANDERSON TORRES admitiu que o Relatório nº 06/2023 havia sido entregue a ele por sua Subsecretária, tendo reconhecido que recebeu o documento antes de sua viagem, mas afirmou que não o leu antes de partir", diz o texto.
Inteligência ignorada e coordenação falha
A PF enfatiza que a Subsecretaria de Inteligência (SI) da SSP/DF produziu o Relatório de Inteligência em 6 de janeiro com informações detalhadas sobre os riscos associados às manifestações. Entre os alertas estavam a convocação para a “Tomada de Poder pelo Povo”, a chegada de grupos organizados, incluindo Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs), e a possibilidade de atos violentos, com participantes armados e portando instrumentos perigosos, como pés-de-cabra e rojões.
No entanto, o relatório foi compartilhado apenas internamente, sem alcançar órgãos-chave, como o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Segundo o documento, “não houve articulação efetiva com outros órgãos de inteligência integrantes do SISBIN”, o que violou os princípios da oportunidade e necessidade?.
A ausência de convites formais ao GSI para a reunião que discutiu o Protocolo de Ações Integradas (PAI) nº 02/2023, realizado em 6 de janeiro, foi particularmente crítica. Como destacou o relatório: “Não há nos autos comprovação formal de que o GSI foi convidado para a reunião ou que tenha recebido o PAI”.
Mobilização insuficiente e respostas atrasadas
A falta de informações e a retenção de relatórios importantes de inteligência culminou no despreparo do efetivo de segurança mobilizado para conter as manifestações. O relatório aponta que o número de policiais militares alocados na Esplanada dos Ministérios era insuficiente, e a ausência de tropas especializadas, como o BOPE e o Batalhão de Cães, prejudicou a resposta.
“Houve um intervalo de aproximadamente duas horas entre o início da manifestação e a tomada de providências operacionais de reforço”, afirma o documento, destacando a demora no acionamento de contingentes adicionais, como os policiais que estavam de prontidão.
Outro ponto crítico foi a instalação de barreiras físicas inadequadas, com gradis frágeis e espaçamento superior ao padrão. Isso permitiu que os manifestantes, munidos de objetos perigosos, rompessem as linhas de contenção e avançassem em direção aos prédios dos Três Poderes.
Omissões deliberadas e contexto político
O relatório também aponta possíveis omissões deliberadas que contribuíram para o agravamento da situação. Segundo o texto, o acampamento na Praça dos Cristais, em frente ao Quartel-General do Exército, foi identificado como ponto estratégico para a concentração de manifestantes. No entanto, ações de desmobilização planejadas ainda em 2022 foram interrompidas “por orientação do Exército Brasileiro”, o que deixou a área disponível para coordenação dos atos de vandalismo.
Além disso, a criação da Célula Integrada de Inteligência (CIISP), no dia 7 de janeiro, foi considerada tardia e limitada em sua capacidade de responder aos eventos iminentes. A Polícia Federal destaca que, embora os alertas de inteligência tenham identificado o deslocamento de grupos violentos, as medidas preventivas foram ineficazes.
Considerações do relatório
Nas páginas finais, a Polícia Federal conclui que a SSP/DF falhou em sua missão de coordenar as ações de segurança pública e prevenir os atos de 8 de janeiro. A ausência de articulação eficaz, a subutilização de informações críticas e a mobilização insuficiente de recursos contribuíram diretamente para a vulnerabilidade das instituições democráticas.
O documento recomenda:
- Revisão dos protocolos de inteligência e operação, com ênfase na integração entre os órgãos do Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN).
- Fortalecimento estrutural e estratégico da segurança pública no Distrito Federal?.
- Responsabilização dos agentes públicos envolvidos, incluindo lideranças da SSP/DF pela condução inadequada das ações de segurança relacionadas aos atos de 8 de janeiro.
As figuras principais apontadas incluem:
- Anderson Torres - À época, Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal. Foi destacado como o responsável pela coordenação geral das ações de segurança pública. O relatório indica que ele não teria garantido uma articulação eficiente entre os órgãos envolvidos e que o Protocolo de Ações Integradas (PAI) nº 02/2023 não foi implementado de forma adequada, contribuindo para a falha na resposta aos eventos.
- Fernando de Sousa Oliveira - Secretário Executivo que assumiu as funções de liderança na ausência de Anderson Torres. Ele também é apontado por ter conhecimento das informações críticas sobre as manifestações, mas não ter implementado medidas preventivas eficazes. Sua coordenação das ações foi descrita como insuficiente diante do risco iminente.
- Cíntia Queiroz de Castro - Subsecretária de Operações Integradas da SSP/DF. Responsável pela coordenação das ações no âmbito operacional, é mencionada no relatório por falhas no planejamento e execução do PAI, incluindo problemas no uso do efetivo policial e na organização das barreiras físicas que não impediram os avanços dos manifestantes.
- Marília Ferreira Alencar - Subsecretária de Inteligência da SSP/DF. O relatório aponta que informações de inteligência cruciais não foram compartilhadas de maneira eficaz, e que a produção do Relatório de Inteligência nº 06/2023 foi limitada e mal difundida. Essa deficiência comprometeu a preparação e integração dos esforços de segurança.