FAKE NEWS

Compartilhar fake news é crime? Entenda por que Bolsonaro é investigado na PF por disparo de empresário

A Revista Fórum conversou com o advogado criminalista André Lozano para esclarecer a questão; além do episódio dos empresários bolsonaristas, ex-presidente foi tornado inelegível por propagar fake news a embaixadores

Bolsonaro fala ao celular.Créditos: Isac Nóbrega/PR
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“Qual é o problema?”, indagou Jair Bolsonaro (PL) nesta quarta-feira (23) ao repórter Igor Gielow, da Folha, durante um voo de Brasília para São Paulo. Na ocasião, o ex-presidente se referia à nova revelação de que enviou mensagem a grupo de WhatsApp com empresários bolsonaristas – já investigados por incitação a tentativas de golpe de Estado – em que autorizava o disparo de fake news. Logo após a aterrissagem, Bolsonaro foi internado no Hospital Vila Nova Star, na capital paulista – coincidentemente no dia seguinte ao que recebeu intimação para depor à Polícia Federal no próximo dia 31 de agosto, justamente sobre esse caso.

A motivação para o novo depoimento de Bolsonaro está na descoberta de uma mensagem de voz em que o ex-presidente autoriza o empresário Meyer Nigri, da Tecnisa, a disparar uma fake news que continha ataques a Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), e ao sistema eleitoral.

Os empresários Meyer Nigri e Luciano Hang. Foto: Reprodução/YouTube/Instagram.

Nela, Bolsonaro ataca declaração de Barroso dada antes das últimas eleições de que o "processo eleitoral é seguro e confiável" e trata a defesa do voto eletrônico como "interferência" do Judiciário. Na mesma mensagem, também divulgava uma fake news sobre um instituto de pesquisa que teria inflado a votação de Lula, entre outras. Nigri prontamente responde: "Já repassei para vários grupos!". E ao se despedir de Bolsonaro envia "abraços de Veneza".

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Ao menos 18 mensagens golpistas foram repassadas por Bolsonaro a Meyer Nigri. O dono da Tecnisa e Luciano Hang, o véio da Havan, seguem sendo alvo de investigação.

"O terminal identificado como utilizado pelo presidente da República Jair Bolsonaro encaminhou diversas mensagens contendo ataques às instituições, especialmente o Supremo Tribunal Federal, ao sistema eletrônico de votação e às vacinas desenvolvidas para combate à covid-19. Após receber o conteúdo, Meyer Nigri realizou a disseminação de tais mensagens para diversos grupos e chats privados de WhatsApp. Resumidamente, os fatos apontam para a atuação do presidente da República Jair Bolsonaro como difusor inicial das mensagens", diz trecho a investigação da PF.

Fake news é crime? Bolsonaro pode ser enquadrado?

É claro que esse contexto vai despertar uma série de dúvidas na população, que se pergunta se propagar fake news é mesmo um crime e qual a razão pela qual Bolsonaro seria investigado pelo episódio com Nigri. Outra dúvida é se o Código Penal pode levar os envolvidos à prisão. Para responder a essas questões tão populares, a Revista Fórum conversou com o advogado criminalista André Lozano.

“As fake news e a mentira, por si só, não são crimes. Ou seja, não basta que uma mentira seja contada para que alguém seja enquadrado criminalmente. É preciso mais que isso. Há situações em que se configura como crime, e os casos mais clássicos são os de calúnia, injúria e difamação, os chamados 'crimes contra a honra' – quando uma mentira é contada, por via de notícia falsa ou não, para atacar alguém. Quando se acusa alguém falsamente de ter cometido um crime, quando se ofende alguém. E na maior parte dos casos as fake news consistem nisso, mas é preciso provar a relação”, explica o criminalista.

Para Lozano, o caso de Bolsonaro é mais “complicado”. Ou seja, precisa de que seja provado que a fake news propagada estaria incitando direta ou indiretamente, por exemplo, os atos golpistas de 8 de janeiro. A partir dessa pista é possível apontar que a investigação em torno do episódio busca apurar, entre outras coisas, se houve essa relação. Em caso positivo, Bolsonaro poderia ser processado no âmbito do Código Penal.

André Lozano, advogado criminalista. Arquivo Pessoal

“Essas fake news, conforme estamos acompanhando no noticiário, parece que visavam abalar a democracia. Parecem motivar, de alguma forma, atos violentos para abolir o Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, se essa leitura for comprovada, ele pode responder ao artigo 359-L do Código Penal, que versa sobre ‘tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais’. A pena varia de 4 a 8 anos de prisão, e ainda se pode acrescentar uma segunda pena, correspondente à violência praticada. Mas é preciso que haja violência ou grave ameaça para que essa fake news seja tida como um crime,” diz Lozano.

Em seguida, o criminalista aponta uma possível estratégia de defesa para a hipotética acusação enquadrada no artigo 359-L do Código Penal. Diz Lozano que a defesa de Bolsonaro poderia alegar que o ex-presidente, ao propagar as notícias, poderia não ter consciência dos possíveis desdobramentos da difusão das mentiras.

“Se estou na acusação, tentaria rebater esse argumento com a questão da invasão do Capitólio, em Washington, em 2021. Na ocasião, ele já havia visto uma turba ensandecida, motivada por fake news, fazendo uma invasão semelhante à de 8 de janeiro nos EUA. E a mando de Trump, que era seu aliado. Para não falar de uma série de outros episódios, no Brasil, em que apoiadores ameaçaram ministros do STF. Será que ele não poderia imaginar que as fake news pudessem ter causado isso? Esse é o ponto central para saber se a fake news de Bolsonaro pode ser considerada um crime ou não”, afirmou.

“De fato, quando ele fala especificamente sobre o Barroso ou qualquer outro ministro, a gente está falando sobre crime contra a honra. Agora, se de alguma forma chegarem à conclusão de que ele sabia que a atitude poderia causar uma reação violenta dos seus apoiadores, aí sim seria possível falar em tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito”, agregou.

Inelegível por fake news propagada a embaixadores

Respondendo à indagação do ex-presidente exposta no começo da matéria, sobre qual seria o problema em propagar notícias falsas, é importante recordar que, ainda que o processo não tenha corrido na esfera criminal, o ex-presidente foi tornado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 30 de junho exatamente por propagar mentiras – e usar o equipamento público para tal.

Ainda exercendo o cargo de presidente da República, Bolsonaro convocou uma reunião com embaixadores no Palácio da Alvorada, onde reproduziu as mesmas teorias conspiratórias sobre as urnas eletrônicas que hoje aparecem na conversa com Meyer Nigri.

Jair Bolsonaro no evento golpista com embaixadores no Planalto. Reprodução/Youtube

A ação proposta pelo PDT correu rápido no TSE por não exigir a produção de provas, uma vez que a reunião com os embaixadores foi transmitida ao vivo pela TV Brasil. Após um acachapante placar de 5 a 2 no TSE, o ex-presidente foi condenado por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação, tendo seus direitos políticos cassados por oito anos.

Live associando vacinas contra Covid-19 a Aids

Em outubro de 2021, quando o Brasil ainda começava a se vacinar contra a Covid-19, Bolsonaro usou as suas redes para espalhar uma fake news sobre as vacinas contra a Covid-19 produzida por um grupo negacionista do Reino Unido. A “tese” em questão afirma que “as pessoas totalmente imunizadas estão desenvolvendo Aids”.

“Outra coisa grave aqui, só vou dar a notícia, não vou comentar, já falei sobre isso no passado e apanhei muito. Relatórios oficiais do governo do Reino Unido sugerem que os totalmente vacinados, quem são os totalmente vacinados? Aqueles que depois da segunda dose, 15 dias depois após a primeira dose… estão desenvolvendo a Síndrome de Imunodeficiência muito mais rápido que o previsto”, disse Bolsonaro durante live.

Trata-se, na verdade, de uma fake news plantada pelo site negacionista Beforeitnews, que publica textos dizendo, entre outras coisas, que as vacinas contra a Covid rastreiam as pessoas. Foi desse site que o ex-presidente Bolsonaro pegou a “notícia” de que a imunização completa contra a Covid desenvolve Aids nas pessoas.

Mauro Cid cochila ao pé do ouvido do chefe durante a live em que vacinas contra a Covid-19 e Aids foram relacionadas. Reprodução/Youtube

Bolsonaro passou a ser investigado pela conduta e quase um ano depois, em agosto de 2022, às vésperas da campanha eleitoral e após ter a quebra de sigilo temático autorizada, um relatório da Polícia Federal divulgado para a imprensa apontou que ele incitou espectadores da live a desrespeitarem as medidas sanitárias e os desencorajou a tomar as vacinas que recém chegavam para a população.

A investigação pediu, junto ao STF, autorização para indiciar e tomar depoimentos de Bolsonaro e do tenente-coronel Mauro Cid, seu ajudante de ordens envolvido em tantos outros escândalos, que o ajudou a produzir o material.Além da live citada, os investigadores ainda fizeram apontamentos a respeito do esquema de propagação das fake news bolsonaristas.

Inquéritos das Milícias Digitais e das Fake News

O primeiro inquérito que investiga o disparo de fake news que favorecem o bolsonarismo é o Inquérito das Fake News, aberto em março de 2019 pelo ministro Dias Toffoli, então presidente do STF, que investigava ataques, notícias falsas, calúnias e ameaças a membros da corte. Naquele momento, Alexandre de Moraes, nomeado relator do inquérito por Toffoli, entrava em cena como um dos alvos dos ataques.

Em 27 de maio daquele ano, operações de busca e apreensão relativas ao inquérito atingiam o empresário Luciano Hang, o deputado federal Roberto Jefferson (PTB-RJ) e o blogueiro Allan dos Santos, do site Terça Livre. Além desses nomes principais, outras 13 pessoas, entre influenciadores, militares e políticos também foram alvos.

Já o Inquérito das Milícias Digitais, aberto em julho de 2021, apurou a existência de uma organização criminosa que, com o objetivo de atentar contra o Estado democrático de Direito em prol de Bolsonaro, teria articulado núcleos de produção editorial, publicação em massa e financiamento.

Para os investigadores, o modus operandi bate com outros esquemas semelhantes no Brasil e no mundo e é composto por quatro fases:

  • Divulgação ampla - em volume e variedade de canais - do conteúdo falso, com o objetivo de dar a impressão que tal conteúdo está respaldado por muitas fontes;
  • Distribuição rápida, contínua e repetitiva, com o objetivo de gerar familiaridade com a informação e aceitação da mesma;
  • Uso de argumentação sem respaldo científico, filosófico ou jornalístico: sem respaldo na realidade;
  • No caso da fake news eventualmente não 'pegar', ou seja, não ser incorporada ao imaginário do público alvo, é descartada e o grupo ataca em outras frentes.

Ambos os inquéritos chegaram ao grupo de WhatsApp dos empresários bolsonaristas que são acusados de incitar atos golpistas e disparar notícias mentirosas.

Empresários bolsonaristas

Há exatamente um ano, em 23 de agosto de 2022, 8 empresários bolsonaristas eram alvos de operação de busca de apreensão da Polícia Federal por conta de um grupo de WhatsApp em comum, onde defendiam a possibilidade de um “golpe violento”, com “derramamento de sangue”, para manter Bolsonaro no poder.

Entre eles estavam Luciano Hang, da Havan, José Isaac Peres, da rede de shopping Multiplan, Ivan Wrobel, da Construtora W3, José Koury, do Barra World Shopping, André Tissot, do Grupo Serra, Meyer Nirgri, da Tecnisa, Marco Aurélio Raimundo, da Mormai, e Afrânio Barreira, do Grupo Coco Bambu.

“Guerra de informação é uma das armas mais poderosas. Em todas as guerras (as fake news) são de importância estratégica! Eles usam direto. Nós apenas estamos olhando. Se não precisar mentiras… ótimo! Mas se precisar para vencer a guerra é aceitável. Muito pior é perder a guerra! Esta mídia e políticos em geral são todos mentirosos profissionais! O Bolsonaro é o esteio da verdade… Isso é indiscutível e muito nobre. Mas os soldados rasos não precisam ou não podem ter a mesma nobreza exatamente porque estão lutando corpo a corpo. Dedo no olho, pontapé no saco. Também não apoio eticamente a mentira. Óbvio. Mas não posso no momento condenar quem usa de todas as armas para lutar contra um mal muito, muito maior! É GUERRA!”, disse Marco Aurélio Raymundo, o Morongo, da Mormaii.

A defesa explícita de um golpe de Estado foi feita pelo empresário José Koury no dia 31 de julho. "Prefiro golpe do que a volta do PT. Um milhão de vezes. E com certeza ninguém vai deixar de fazer negócios com o Brasil. Como fazem com várias ditaduras pelo mundo”, escreveu, sendo endossado por Afrânio Barreira, do Coco Bambu, que reagiu à mensagem com uma figurinha de aplausos.

André Tissot, do Grupo Sierra, por sua vez, também falou abertamente sobre golpe. "O golpe teria que ter acontecido nos primeiros dias de governo.[Em] 2019 teríamos ganhado outros 10 anos a mais”, disparou.

Morongo, dono da marca de surfwear Mormaii, também sugeriu que as Forças Armadas sejam usadas de forma estratégica nos atos bolsonaristas de 7 de setembro, reforçando a narrativa golpista de seu colega. “O 7 de setembro está sendo programado para unir o povo e o Exército e ao mesmo tempo deixar claro de que lado o Exército está. Estratégia top e o palco será o Rio. A cidade ícone brasileira no exterior. Vai deixar muito claro”, escreveu.

Antes, Ivan Wrobel, dono da W3 Engenharia, já tinha ido na mesma linha com outra mensagem: "Quero ver se o STF tem coragem de fraudar as eleições após um desfile militar na Av. Atlântica com as tropas aplaudidas pelo público".

Por fim, a sugestão de uso da violência contra um eventual retorno de Lula ao Palácio do Planalto foi feita por Morongo no mês de maio. “Se for vencedor o lado que defendemos, o sangue das vítimas se tornam [sic] sangue de heróis! A espécie humana SEMPRE foi muito violenta. Os ‘bonzinhos’ sempre foram dominados… É uma utopia pensar que sempre as coisas se resolvem ‘na boa’. Queremos todos a paz, a harmonia e mãos dadas num mesmo objetivo… masssss [sic] quando o mínimo das regras que nos foram impostas são chutadas para escanteio, aí passa a valer sem a mediação de um juiz. Uma pena, mas somente o tempo nos dirá se voltamos a jogar o jogo justo ou [se] vai valer pontapé no saco e dedo no olho”, declarou o bolsonarista.

No último 18 de agosto, o ministro Alexandre de Moraes determinou o arquivamento da investigação que tinha como foco o grupo de WhatsApp dos empresários bolsonaristas tratando da possibilidade de um golpe de Estado. O ministro, no entanto, manteve a investigação contra Meyer Nigri e Luciano Hang, o véio da Havan.

O arquivamento alcança os empresários José Isaac Peres (rede de shopping Multiplan), Ivan Wrobel (Construtora W3), José Koury (Barra World Shopping), André Tissot (Grupo Sierra), Marco Aurélio Raimundo (Mormaii) e Afrânio Barreira (Grupo Coco Bambu). Segundo o ministro, “não foi encontrada nenhuma prova robusta” contra eles.