Advocacia e Inteligência Artificial entre a urgência da inovação e o compromisso com a Justiça – Por Álvaro Quintão
A inteligência artificial já está transformando a prática jurídica. À advocacia cabe decidir se será protagonista dessa transição, ou espectadora da própria obsolescência
Nós, advogados, somos guardiões de uma profissão que respira história, ética e o compromisso inabalável com a justiça. Nossa rotina é tecida por linguagem técnica, reflexão crítica e a incessante busca pela verdade. No entanto, o tempo não para, e a tecnologia, especialmente a Inteligência Artificial (IA), nos coloca diante de uma encruzilhada decisiva. Não se trata mais de uma escolha, mas de uma necessidade: ou abraçamos, com responsabilidade e inteligência, as novas ferramentas que a IA nos oferece, ou corremos o risco de ver nossa profissão ser atropelada por uma lógica puramente algorítmica, que, embora eficiente, carece da essência humana e da compreensão profunda do que significa a justiça.
Os números não mentem e reforçam essa urgência. Uma pesquisa global recente da Thomson Reuters, divulgada em 2025, revelou que 81% dos profissionais jurídicos já conseguem enxergar aplicações claras da IA generativa em suas atividades diárias. Mas não é só lá fora. Aqui no Brasil, estamos vivendo essa mesma revolução. Um levantamento minucioso, conduzido pela OAB-SP em parceria com instituições como o ITS-Rio e o Jusbrasil, aponta que mais de 55% dos advogados brasileiros já utilizam a IA regularmente, com um impressionante percentual de 78% fazendo uso dela ao menos uma vez por semana. Essa adoção não é superficial; ela se manifesta em diversas frentes: desde a otimização da pesquisa de jurisprudência, passando pela revisão automatizada e minuciosa de contratos, até a geração de minutas de peças processuais preliminares que, naturalmente, são aperfeiçoadas e lapidadas por nós, profissionais humanos.
Estamos, sem sombra de dúvidas, diante de um processo irreversível de reconfiguração de toda a prática jurídica. As habilidades que sempre foram o alicerce da nossa profissão, o domínio impecável do texto legal, a arte da argumentação lógica, a eloquência da oralidade, continuam sendo relevantes, claro, mas já não são suficientes por si só. A nova advocacia, a advocacia do futuro que já é presente, exige um letramento digital profundo, a compreensão de como as ferramentas de IA funcionam e como podem ser aplicadas, noções básicas de gestão de dados sensíveis e, acima de tudo, a capacidade de articular a tecnologia com a estratégia jurídica e o valor agregado que entregamos aos nossos clientes.
Paralelamente, o modelo de negócio tradicional, aquele que se baseia na mera contagem de horas trabalhadas, mostra-se cada vez mais inadequado e obsoleto. À medida que sistemas automatizados otimizam tarefas como a exaustiva análise de contratos ou a rápida identificação de riscos jurídicos, os clientes, com toda a razão, tendem a valorizar não o tempo que dedicamos a uma tarefa, mas sim a solução efetiva e o resultado entregue. Isso impulsiona, de forma natural, o surgimento de modelos híbridos de precificação, que se baseiam em entregáveis claros, em metas alcançadas e até mesmo em pacotes de assinatura de serviços. O valor do advogado, nesse novo cenário, passará a ser medido não pela quantidade de trabalho repetitivo que ele executa, mas sim pela originalidade de sua interpretação do Direito, pela eficiência na resolução de conflitos complexos e pela sua capacidade de prevenção estratégica de problemas futuros.
É natural que essa transição, por mais promissora que seja, exija de nós uma vigilância constante e apurada. O uso da IA na advocacia, é importante ressaltar, não é um terreno neutro. Modelos de linguagem que são treinados com base em decisões judiciais passadas podem, inadvertidamente, reproduzir vieses sistêmicos que já existem na sociedade, reforçar desigualdades e até mesmo automatizar injustiças. A advocacia não pode, sob a justificativa de uma maior eficiência, abrir mão de seu compromisso inegociável com os princípios constitucionais que regem nossa nação, com a escuta ativa e empática do cliente e, primordialmente, com a promoção da equidade e da justiça social.
A OAB, consciente dessa responsabilidade, agiu de forma exemplar ao aprovar, em novembro de 2024, um conjunto abrangente de recomendações sobre o uso ético da IA na advocacia. Essas diretrizes deixam claro, sem margem para dúvidas, que o exercício da nossa profissão é pessoal, indelegável e deve, acima de tudo, ser supervisionado por um profissional devidamente habilitado. A IA pode ser uma ferramenta incrivelmente poderosa, uma aliada em nossa jornada, mas jamais uma substituta do advogado. Além disso, a proteção de dados sensíveis, o sagrado dever de sigilo e a transparência absoluta sobre o uso dessas tecnologias precisam estar no centro de toda a nossa atuação profissional.
Curiosamente, e paradoxalmente, a mesma tecnologia que alguns veem como uma ameaça de automatizar excessos pode ser uma força transformadora para democratizar o acesso à justiça. Ferramentas de IA que sejam acessíveis, seguras e bem desenvolvidas podem permitir que pequenas bancas e advogados autônomos atendam seus clientes com mais qualidade, agilidade e, crucialmente, a um custo menor. Softwares de atendimento automatizado, por exemplo, podem realizar triagens iniciais eficientes e fornecer informações jurídicas básicas a populações que, hoje, sequer conseguem agendar uma consulta com um advogado. O grande desafio, e nossa missão, é garantir que essa democratização ocorra sempre com a ética como bússola, a supervisão humana como garantia e o amparo legal como alicerce.
A advocacia não está sendo extinta. Longe disso. Ela está sendo, sim, profundamente transformada. E, como toda grande transformação, isso exige de nós um compromisso com a formação continuada, uma postura crítica diante das novidades e, acima de tudo, uma disposição genuína para abraçar o novo. O profissional que se mantiver ancorado exclusivamente em práticas herdadas, desconectadas da vibrante realidade tecnológica que nos cerca, provavelmente verá sua relevância diminuir de forma drástica. Por outro lado, o advogado que souber aliar a rica tradição jurídica com a inovação tecnológica será uma peça-chave, indispensável em um ecossistema cada vez mais complexo, plural e interdependente.
O futuro da advocacia não é uma distopia a ser temida, mas uma oportunidade a ser construída. Contudo, esse futuro será, sem dúvida, incompatível com o imobilismo. Cabe a nós, operadores do direito, assumirmos o protagonismo desse processo. Porque, no fim das contas, nenhuma inteligência — seja ela artificial ou não,é capaz de substituir o que há de mais essencial e humano na nossa profissão: a inestimável capacidade de interpretar a norma diante da vida concreta de cada indivíduo, de mediar conflitos com empatia e sabedoria, e de lutar incansavelmente por justiça mesmo quando ela parece ser a opção mais improvável. É essa chama humana que nos define e que nos guiará nessa fascinante jornada.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.