OPINIÃO

Revogar as práticas medicinais ancestrais no SUS é um retrocesso

Recente decisão da prefeitura do Rio de Janeiro evidencia a persistência do racismo religioso e a falta de compromisso com a reparação histórica para o povo negro no Brasil.

Ato no Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial.Créditos: Paulo Pinto/Agência Brasil
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A recente decisão da prefeitura do município do Rio de Janeiro de revogar a resolução que reconhecia oficialmente as práticas ancestrais de matrizes africanas como parte da promoção da saúde complementar ao Sistema Único de Saúde (SUS) no Rio de Janeiro não apenas desconsidera a importância dessas práticas milenares, mas também evidencia a persistência do racismo religioso e a falta de compromisso com a reparação histórica para o povo negro no Brasil.

A resolução ampliava o princípio já existente de respeito aos praticantes da religião e as normas e condutas esperadas por funcionários do SUS em relação a esses pacientes, garantindo direitos e um tratamento igual a todas as outras pessoas nos serviços da saúde. Para além disso, a resolução era pioneira no sentido de fortalecer a visão de saúde complementar do sujeito humano. Tendo em vista que aceitamos como tratamentos complementares como o Reiki e outras práticas orientais também igualmente criticadas por serem pseudociência mas que de todas as maneiras se ajustam à compreensão individual de saúde do paciente, ampliando assim seu potencial de cura e alívio de seu sofrimento biopsicossocial.

Um estudo publicado pelo sociólogo E. S. Ataudo no periódico Social Science & Medicine (1985) destaca que a medicina tradicional africana “promove o cumprimento biopsicossocial da saúde”, ao tratar o indivíduo de forma integral — física, mental, espiritual e comunitária. As práticas de medicina africana “formam parte da experiência sociocultural de seus povos e oferecem na atenção primária à saúde assistência até 80% da população em regiões onde a medicina moderna é inacessível”. Estudos como de Ataudo se aplicam diretamente ao Brasil, onde os sistemas de cura de matriz africana, como os presentes no Candomblé, na Umbanda e no Ifá por exemplo, compartilham a mesma lógica de integração entre corpo, espírito e sociedade das culturas endógenas africanas. A medicina tradicional africana deve ser entendida como um sistema de saúde distinto, que não é rudimentar nem "pré-científico", mas sim baseado em princípios complexos de harmonia espiritual, equilíbrio social e bem-estar psicológico. Ignorar tais práticas em nome de uma suposta “neutralidade religiosa” no SUS significa não apenas deslegitimar saberes milenares, mas também excluir da política pública uma forma de cuidado que, conforme reconhecido pela própria OMS, promove saúde para além da ausência de doença.

Historicamente, as religiões de matriz africana têm sido alvo de discriminação e perseguição no país. O racismo religioso no Brasil é uma extensão do racismo estrutural, onde práticas e saberes afro-brasileiros são sistematicamente desvalorizados e marginalizados. Essa desvalorização se manifesta na negação de espaços institucionais para expressões culturais e religiosas negras.

A decisão da prefeitura também ignora o papel fundamental que essas práticas desempenham na promoção da saúde dentro das comunidades afro-brasileiras. As práticas de cura das religiões afro-brasileiras são formas legítimas de cuidado e resistência, que integram corpo, mente e espiritualidade, e não diferentes das práticas complementares já reconhecidas da medicina chinesa, por exemplo. Ao excluir essas práticas do reconhecimento do SUS, nega-se o direito das comunidades afro-brasileiras de acessarem cuidados de saúde que respeitam e incorporam suas tradições e cosmovisões. E portanto, por quê a medicina africana provoca tanta aversão e resistência por parte das instituições?

Além disso, a influência de setores neopentecostais na política brasileira tem intensificado a perseguição às religiões de matriz africana. A expansão neopentecostal tem sido acompanhada por um discurso demonizador das religiões afro-brasileiras ao longo de décadas, e de certa forma essa perseguição dura séculos, resultando em conflitos e violência simbólica e física contra seus praticantes. A revogação da resolução pode ser interpretada como uma concessão a esses grupos, reforçando a intolerância e o preconceito religioso.

A reparação histórica para o povo negro no Brasil exige o reconhecimento e a valorização de suas práticas culturais e religiosas. A inclusão das práticas de matrizes africanas no SUS representava um passo significativo nesse sentido, promovendo a igualdade e o respeito à diversidade. A revogação dessa medida é um retrocesso que perpetua a marginalização e o silenciamento da ancestralidade africana no país.

É necessário que a sociedade civil, acadêmicos e movimentos sociais se mobilizem contra essa decisão, exigindo a retomada de políticas públicas que reconheçam e integrem as contribuições das culturas afro-brasileiras. Somente assim será possível avançar na construção de uma sociedade verdadeiramente plural e democrática, onde todas as expressões culturais e religiosas tenham seu devido lugar e respeito.

Fonte: Ataudo, E. S. (1985). Traditional Medicine and Biopsychosocial Fulfilment in African Health. Social Science & Medicine, 21(12), 134

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