CRÔNICA

Em Bucareste – Por Esther Rapoport

"Andando até o centro encontrei grandes contrastes na paisagem. Alguns edifícios praticamente abandonados, tétricos, horrorosos; outros monumentais, melhor conservados. Mas minha caminhada tinha rumo certo"

O imponente Palácio do Parlamento em Bucareste.Créditos: Wikimedia Commons
Escrito en OPINIÃO el

Vim trabalhar e descobrir mais um país ex-socialista .... vejamos como eles estão se saindo nesse novo século.

Os romenos são de um humor às vezes inesperado. As pessoas que trabalham com o público, como atendimento no balcão da companhia aérea, taxistas na cidade, caixa de restaurante, frequentemente são rudes, mal-humoradas, grosseiras. Mas quando se tem a oportunidade de aprofundar o contato, uma conversa mais longa ou sendo apresentado por alguém, são muito simpáticos, revelam sentimentos, sorriem, abraçam e dão beijinhos, chegam a ser carinhosos. 

Depois de muitas reuniões e trabalho, fui caminhar um pouco para conhecer a cidade. 

Andando até o centro encontrei grandes contrastes na paisagem. Alguns edifícios praticamente abandonados, tétricos, horrorosos; outros monumentais, melhor conservados. Alguns modernos, outros lindos, lembranças da Belle Époque. Mas minha caminhada tinha rumo certo. Fui fazer uma única visita “turística” em Bucareste: o Palácio do Parlamento.

Este prédio se chama hoje de Parlamento porque abriga o Senado e a Câmara de Deputados, mas as pessoas se referem a ele como a “Casa do Povo”, nome original porque ali teria sido a sede da presidência do país, de todos os ministérios e órgãos públicos, no período socialista.

Mas para vocês entenderem o impacto que tive ao conhecer esse palácio, preciso contextualizar seu projeto, preciso relembrar quem foi Ceausesco, preciso voltar aos idos de 1960/70.

Nicolau Ceausesco foi galgando o poder: de secretário do Partido Socialista Romeno à presidência do Conselho de Estado e daí à Presidência da República, governando a Romênia desde meados dos anos 60 com mão de ferro. É interessante lembrar que ele desafiava as ordens soviéticas. Por exemplo, foi contrário à invasão da Tchecoslováquia ou ao boicote pelos países socialistas aos Jogos Olímpicos de Los Angeles, mas também foi contrário a qualquer liberalização do país e a Polícia Secreta Romena exercia controle absoluto da mídia e de todas as atividades nacionais até o final do regime.

Em 1971 visitou a Coreia do Norte e se encantou com o que viu. Voltou para casa cheio de ideias ... tadinhos dos romenos ... 

No ano seguinte começou a desenvolver um projeto maluco de urbanização e industrialização da Romênia, e foi logo demolindo aldeias e vilas rurais inteiras, para transferir seus habitantes para as cidades, antes mesmo de construir habitações para essa massa humana. Começou o caos e a dívida pública.

Como ele tinha aquele discurso de resistência às ordens de Moscou, o ocidente lhe dedicou uma certa simpatia e liberou uma linha de crédito para Romênia, com juros de país capitalista. Na hora de começar a pagar a dívida, a economia romena começou a engasgar e a tossir.

Para pagar a conta precisava gerar recursos e o país passou a exportar tudo o que produzia, especialmente sua safra. Foi introduzido um racionamento alimentar porque tudo era para exportação. Li que foi criada até uma lei nacional sobre as calorias consumidas, diminuindo o valor garantido para cada habitante, de acordo com sua profissão, a fim de justificar a falta de alimentos disponíveis no mercado. Outro decreto reduziu a temperatura máxima no aquecimento das casas, assim como reduziu o fornecimento de luz e de gasolina no país. Tudo para gerar saldo para pagar a dívida. 

Nesse clima social, em 1984, ele decidiu realizar seu sonho e construir seu palácio. Mas não se inspirou em Versailles ou Buckingham, não... esses são muito básicos, simplórios... Ceausesco sonhava com algo maior.

Em meados da década de 80, com o mundo socialista já dando os primeiros sinais de crise e a população romena definhando de fome, ele emprestou mais dinheiro no Ocidente e começou a construção da Casa do Povo, que é hoje o segundo maior edifício do mundo (perde para o Pentágono), derrubando um bairro inteiro para dar lugar ao prédio principal e o entorno. Foram abaixo 40 mil edifícios, 22 igrejas (entre ortodoxas e protestantes) e seis sinagogas. Derrubou uma colina inteira para construir seu prédio.

Não dá para escapar dos números: superfície de 330 mil metros quadrados; 86 metros de altura além de quatro níveis de subsolo; 3.100 salas e salões e mais de 60 galerias, algumas com até 150 metros de comprimento e 18 de largura; 40 dos salões tem 600 metros quadrados e a Sala da União que tem 3 mil metros quadrados. Tudo decorado com luxo e muita ostentação. Todo o material usado é romeno: mais de um milhão de metros quadrados de mármore da Transilvânia, 3.500 toneladas de cristais para os lustres, 700 mil toneladas de aço e bronze, 900 mil metros cúbicos de madeira para o piso e revestimentos, 200 mil metros quadrados de tapetes, etc, etc, etc... em um estilo chamado de clássico socialista, que já havia sido abandonado na União Soviética desde os anos 50. 

Trabalharam por cinco anos, 24 horas por dia, 7 dias por semana, mais de 20 mil operários sob a gerência de 700 arquitetos e engenheiros, alguns deles assassinados pela Polícia Secreta quando terminavam sua parte porque sabiam dos segredos dos subterrâneos do prédio e podiam colocar em risco a vida do ditador, que era um paranoico (tinha até um empregado para experimentar sua comida).

Mas o fofo não chegou a usufruir de sua obra. Estava já quase pronto, faltando terminar alguns espaços no subsolo e mobiliar parte dos salões quando o povo resolveu dar um basta. Em dezembro de 1989 começaram a pipocar protestos, revoltas e uma verdadeira rebelião tomou conta de pontos estratégicos. Nicolau tentou fugir mas não consegui, traído pelos próprios militares. Foi julgado por um improvisado tribunal militar e fuzilado em seguida.

Visto pela população com um ódio que vocês podem imaginar, acumulado pelos anos de carestia, os novos líderes nacionais estudaram a demolição do prédio, mas descobriram que ficaria mais caro derrubá-lo do que termina-lo e por isso foram até o final, já que todo material necessário estava ali, preparado e disponível. Hoje é também um Centro de Convenções do país e todas as salas, exceto aquelas usadas pelo Senado e Câmara, estão disponíveis para locação.

Em Bucareste existe também um outro centro de exposições, mais pobrinho, e foi lá que trabalhei, participando de uma Feira de Turismo. Um lugar horrível, com vários pavilhões em cimento sem nenhuma decoração, sem nenhum acabamento, alguns pintados com cores bregas, muito baixo astral. Mas neste dia o táxi me deixou na entrada errada e tive que atravessar um pátio até o pavilhão onde estava o meu stand... Cruzei este espaço ouvindo a música que vinha dos alto falantes: 

“Yesterday, All my troubles seemed so far away, Now it looks as though they're here to stay, Oh, I believe in yesterday ....”

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum

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