A diretora francesa Coralie Fargeat cria uma verdadeira experiência ácida em ode crítica ao excesso que Hollywood de fato é: A plasticidade em si elevada ao transbordamento e à distorção, e a estética como linguagem narrativa. É o sintético e prostético no lugar de palavras, construindo alguns dos frames e cenas mais marcantes dos últimos tempos pra mostrar o apreço da diretora pela década de 80, numa fusão de Cronenberg a Carpenter, incluindo a trilha sonora em sintetizadores.
Para não adiantar nada e estragar qualquer envolvimento com a história, basta saber que as atrizes Demi Moore e Margaret Qualley interpretam mais ou menos a mesma personagem numa crônica sobre a busca em vão por uma juventude e beleza eternas, mesmo que vazias, especialmente numa imposição social de milênios de patriarcado. As duas protagonistas se desenvolvem quase como mãe e filha, mesmo sendo a mesma pessoa, onde a juventude costuma ser inconseqüente e desobediente por natureza, querendo superar as gerações anteriores. A personagem de Qualley até chama a de Moore de mãe. Ela vive a juventude da outra de novo. Mas a questão mesmo são os desafios de continuar a se sentir relevante perante a descartabilidade de uma indústria moedora de carne. Os vícios, como no uso sem efetivo acompanhamento médico (e psicológico) de botox, ácido hialurônico, ozempic, cirurgias plásticas e etc, ganham ainda mais contornos aqui e evisceram a fragilidade da autoestima por trás do rosto, da expressão, do olhar.
Muito desta corporeidade no filme vem da escolha de Demi Moore para liderar o elenco, até mesmo perante certa "convencionalidade" de sua carreira, não muito afeita a filmes estranhos como esse "A Substância". A entrega abnegada da filmografia de Moore e da "exigência" por beleza em todas as suas personagens são ferramentas que a diretora Fargeat usa como simbologia em prol da bagagem desta personagem-casca que já chega pronta, porque a escoramos em quem a atriz já foi, e não em quem é agora, por causa de nossas próprias noções pré-concebidas, e que o filme justamente deseja confrontar. À conta desta razão, torna-se curioso revisitar filmes de Moore na memória (e revê-los depois em casa, como "Proposta Indecente", "G.I. Jane" e "As Panteras Detonando") que já se escoravam no status estelar dela com camadas que, hoje, podem ser ressignificadas por esta reviravolta que a coloca de volta sob os holofotes (quiçá pra possível indicação ao Oscar 2025, como "Birdman" fez com Michael Keaton e, mais recentemente, "Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo" fez por Michelle Yeoh).
Fargeat gosta muito de usar referências para tecer suas narrativas, seja este exemplo da metalinguagem com a filmografia de Moore, ou inúmeras outras citações e colagens que ela revaloriza: de contos de fadas como "A Bela Adormecida" e "Cinderela" aos clássicos como "O Retrato de Dorian Gray" e "O Médico e o Mosntro", sem falar na analogia com bruxas ("As Bruxas de Eastwick" e "Convenção das Bruxas"). E essa ousadia metalinguística já se demonstrava antes na carreira da própria, como com sua estreia em longas-metragens, "Revenge" (2017), anterior a este novo exemplar, mas que igualmente já usava a estética e o corpo, além do sangue, como linguagens narrativas diretas a decupar a cena, com pouquíssimos diálogos. Aqui, a fisicalidade desmembrada é o corpo da carreira da própria estrela-protagonista Demi Moore, que está monstruosa na tela, no sentido figurado e literal. Na verdade, se há um único defeito nas inúmeras inovações do filme seria deixar um gostinho de quero ainda mais de Moore!
A controvérsia do roteiro, que ganhou a respectiva categoria no Festival de Cannes 2024, de fato, pode não agradar a todos, porque é um tipo de trabalho calcado na evolução estética e no corpo, e isso é uma aposta, com certeza. Mas é uma escolha estrutural válida, mesmo que radicalmente oposta à narrativa tradicional, e predisposta a desvios e curvas sinuosas no roteiro que se sustentam muito mais na exacerbação da desconstrução da simbologia do grotesco do que na construção da palavra como ponte. E aí cabe ao gosto do freguês. Justamente por isso, mesmo os vários finais e resoluções seguidas são compensadas pelas sacadas impagáveis que resgatam e ressignificam em tom de sarcasmo os atos anteriores, com homenagens extradiegéticas de "2001 - Uma Odisseia no Espaço" a "Carrie - A Estranha" e "O Iluminado".
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.