OPINIÃO

Mídia e memória geopolítica - Por Francisco Fernandes Ladeira

Em certa medida, os grandes grupos de comunicação também condicionam nossas “memórias geopolíticas”

Charge sobre tragédia com o menino Alan Kurdi e as torres gêmeas em 11 de setembro de 2001.Créditos: Reprodução / Domínio público Wikimedia
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Outro dia, uma amiga, ao comentar sobre a edição semanal da Revista Fórum, escreveu no WhatsApp: “bateu um susto/mal-estar quando li 'vinte e três anos do ataque das Torres Gêmeas’” Em sequência, descreveu com detalhes o que estava fazendo no dia 11 de setembro de 2001, quando soube daquele histórico acontecimento.

Continuando a conversa, ela disse que outra amiga também se lembrava com detalhes daquele dia, mesmo passadas duas décadas. 

Evidentemente, o ataque promovido pela Al Qaeda no centro econômico do império estadunidense foi algo marcante, porém não estaria tão presente em nossa memória se não fosse sua cobertura midiática.

Eu já havia constatado isso em 2017, quando fiz minha pesquisa de mestrado, sobre a influência dos discursos dos noticiários internacionais da grande mídia nos imaginários geopolíticas de estudantes do terceiro ano do ensino médio.

Na época, foram exibidas cinco imagens aos alunos, solicitando que eles descrevessem quais ideias lhes vinham à mente ao vê-las. Uma das imagens eram as anteriormente citadas Torres Gêmeas em chamas, após o ataque promovido pela Al Qaeda. Outra imagem exibida, referente ao ano de 2015, mostrava o menino Alan Kurdi, de apenas três anos, morto em uma praia do Mar Mediterrâneo, o que simbolizava o drama dos imigrantes sírios que tentavam entrar no continente europeu, fugindo da guerra civil em seu país (ironicamente, conflito impulsionado pelas próprias potências da Europa, em conluio com os Estados Unidos).

Quando ocorreu o atentado de 11 de setembro, os participantes de minha pesquisa de mestrado eram recém-nascidos (período em que, devido à imaturidade cognitiva, os seres humanos têm grandes dificuldades em reter informações). Já no contexto da foto do menino Alan, eles tinham por volta de 15 anos (idade suficiente para memorizar um determinado acontecimento). 

No entanto, o percentual de alunos que identificaram corretamente o cenário geopolítico da imagem do garoto sírio (51%) foi consideravelmente menor do que o percentual de estudantes que identificaram o ataque às Torres Gêmeas (85%). Inclusive, um deles frisou: “As Torres Gêmeas, eu conheço toda a história, mas não vivenciei nada disso”. Por sua vez, outro estudante apontou que o programa TV Globinho foi interrompido pela vinheta do plantão do jornalismo da Rede Globo. 

Desse modo, concluí que a visibilidade midiática pode ser um fator que explique os números citados acima. Enquanto o atentado de 11 de setembro é frequentemente lembrado nos principais órgãos de comunicação, a presença dos fluxos migratórios de refugiados sírios para a Europa nos noticiários internacionais limitou-se a alguns dias. Logo, devido a grande repetição, temos a impressão de que o ataque às Torres Gêmeas foi “ontem” (o que explica o “susto/mal-estar” de minha amiga). 

Enquanto tragédias naturais e humanas ocorridas em nações desenvolvidas, sobretudo nos Estados Unidos, são constantemente relembradas pela grande mídia; fatos similares envolvendo indivíduos de países pobres, por outro lado, têm uma breve repercussão nos noticiários internacionais e, posteriormente, são esquecidos pelos principais veículos de comunicação de massa.

Portanto, a mídia não apenas “recorta” a (complexa) realidade das relações internacionais, selecionando aquilo que vai ser noticiado, e ocultando o que querem que não seja de conhecimento do público. Em certa medida, os grandes grupos de comunicação também condicionam nossas “memórias geopolíticas”, ou seja, o que vamos lembrar a respeito de outras regiões do planeta (se têm o poder de definir sobre “como” vamos pensar a geopolítica, aí já é outra história!).