A ligação de Gloria Steinem, uma das principais vozes do feminismo dos EUA, com a Central Intelligence Agency (CIA, Agência Central de Inteligência), tem sido um tema de discussão controverso ao longo de décadas. Neste segundo final de semana do mês em que o Brasil deflagra a campanha anual Agosto Lilás - para conscientizar sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher - as redes sociais brasileiras desenterraram essa ligação nebulosa.
Em muitos casos, o objetivo de trazer à tona esse fato serve apenas desqualificar a luta das mulheres por equidade de gênero. Em outros, para desacreditar uma personagem que, para o bem ou para o mal, influenciou o movimento feminista no Brasil. Em ambos, há uma dificuldade desconcertante em compreender circunstâncias históricas e sociais, a dialética e as contradições inerentes à natureza humana.
Te podría interesar
Notícia requentada
Essas acusações contra Steinem não são novidade e circulam desde o final dos anos 1960. A extinta revista Ramparts - publicação voltada para o jornalismo investigativo e político que circulou nos EUA entre 1962 e 1975 e que obteve prestígio por reportagens incisivas e críticas sobre questões como a Guerra do Vietnã, a luta pelos direitos civis, e as atividades clandestinas da CIA - revelou que a líder feminista havia trabalhado para uma organização financiada pela CIA.
A agência de inteligência dos EUA recrutou estadunidenses para participar de festivais de jovens comunistas em Viena e Helsinque em 1959 e 1962. O apoio do grupo foi exposto pela primeira vez em 1967 na Ramparts, depois no The Washington Post e no The New York Times.
Te podría interesar
Em entrevista ao The New York Times em outubro de 2016, Steinem pintou esse capítulo controverso como inocente. Na ocasião ela disse que ninguém na CIA jamais a pediu para fazer ou dizer qualquer coisa, e que ela não informou para a agência. “É tão interessante agora, porque as iniciais C.I.A. farão as pessoas acreditarem em qualquer coisa”, disse ela. “Só não foi assim. Foi tão descontrolado. Como eu me lembro de dizer na época, se esse fosse o dinheiro da nossa avó, estaríamos fazendo a mesma coisa."
Naquela ocasião, a crítica de outras feministas foi especialmente ferida, admitiu Steinem. “Elas nunca ligaram para me perguntar o que eu fiz”, disse ela. “Isso dói mais do que qualquer coisa.” Ela acrescentou: “Se alguém ainda se importa com o que aconteceu há tanto tempo, estou feliz em responder a quaisquer perguntas”.
A CIA pintada por Steinem
Steinem admitiu publicamente seu envolvimento com a CIA. Ela defendeu sua participação, afirmando que, na época, a agência era vista como uma organização liberal e não violenta, diferente da imagem negativa que adquiriu posteriormente.
O fato é que Steinem trabalhou para a Independent Research Service, uma organização financiada pela CIA, no final dos anos 1950 e início dos anos 1960. Ela afirmou que, se tivesse a escolha, faria o mesmo novamente, destacando que esse financiamento permitiu que ela participasse de eventos internacionais sem as restrições que enfrentaria se dependesse de fundos privados.
Não sou capaz de dizer o que Steinem considera violência ou que quis dizer sobre a imagem negativa da CIA. Mas é de conhecimento público que antes ou durante a ligação dela com a CIA, a agência esteve envolvida em golpes de Estado, bem no início dos anos 1950. Como no Irã, conhecido como Operação Ajax, que ocorreu em agosto de 1953.
A CIA, em parceria com o serviço de inteligência britânico MI6, organizou e financiou a derrubada do primeiro-ministro democraticamente eleito Mohammad Mossadegh, que havia nacionalizado a indústria petrolífera iraniana, anteriormente controlada pela Anglo-Iranian Oil Company (hoje BP), o que gerou grande insatisfação por parte do Reino Unido e dos Estados Unidos. O golpe resultou na restauração do xá Mohammad Reza Pahlavi ao poder, marcando o início de um regime autoritário apoiado pelos EUA, que durou até a Revolução Islâmica de 1979.
Essa CIA "progressista" de Steinem também desempenhou um papel central no golpe de Estado na Guatemala em 1954, conhecido como Operação PBSUCCESS. Esse golpe resultou na derrubada do presidente democraticamente eleito Jacobo Árbenz, marcando o início de décadas de instabilidade política e violência no país.
Duelo com Betty Friedan
Durante o fervor das revelações de sua ligação com a CIA, em especial durante as décadas 1960 e 1970, Steinem enfrentou críticas de outras feministas, como Betty Friedan, uma das principais figuras do movimento feminista dos Estados Unidos e autora de A Mística Feminina.
Friedan, que era mais radical em sua abordagem feminista e desconfiava das influências externas que poderiam desviar o movimento de suas raízes, questionou a autenticidade e as motivações de Steinem após essas revelações. Essas críticas giravam em torno da ideia de que o envolvimento de Steinem com a CIA poderia ter influenciado o movimento feminista de maneiras que não eram inteiramente transparentes ou alinhadas com os princípios de luta contra todas as formas de opressão, incluindo as de classe.
Friedan temia que a ligação de Steinem com a CIA pudesse desviar o movimento para uma agenda que não contemplasse completamente as necessidades das mulheres trabalhadoras e das minorias, focando apenas nas questões de gênero, sem considerar as interseccionalidades com a classe e a raça.
O duelo entre Friedan e Steinem é parte de um contexto maior de rivalidade e discordância entre diferentes vertentes dentro do movimento feminista. As tensões entre as duas refletiam a diversidade de perspectivas dentro do feminismo da época, especialmente no que diz respeito à melhor maneira de abordar a opressão e a desigualdade.
Contra a luta de classes
Talvez o mais elucidativo dessa ligação entre Steinem e a CIA em tempos de debates sobre "cultura woke" e "identitarismo" tenha sido seu papel durante os anos 1970 em eliminar do movimento feminista a discussão sobre a luta de classes, concentrando toda a atividade exclusivamente na questão de gênero.
As revelações sobre o envolvimento de Steinem com a CIA alimentaram as críticas de que sua atuação pode ter sido influenciada para desviar o movimento feminista de discussões sobre luta de classes e socialismo, concentrando-se exclusivamente na questão de gênero. A CIA, na época, estava empenhada em combater o comunismo e outras ideologias de esquerda, e o feminismo que focava exclusivamente no gênero poderia ser visto como menos ameaçador para a ordem capitalista existente.
Embora as contribuições de Steinem para o movimento feminista devam ser reconhecidas, especialmente em relação aos direitos reprodutivos e igualdade de gênero, também há espaço para críticas de que seu enfoque no feminismo liberal tenha marginalizado questões de classe dentro do movimento feminista dos EUA.
Steinem foi uma das principais vozes do feminismo liberal, que se concentra em reformar as instituições existentes para alcançar a igualdade de gênero, em vez de questionar ou desmantelar essas estruturas.
Essa abordagem, que se alinha mais com a promoção de direitos individuais, como o direito ao aborto e a igualdade no local de trabalho, muitas vezes deixou de lado as discussões sobre como as desigualdades econômicas afetam desproporcionalmente as mulheres de de acordo com a classe e raça.
A Ms. Magazine, revista fundada por Steinem, foi um marco para o feminismo ao focar em questões como os direitos reprodutivos e a violência contra as mulheres. Mas a revista não deu a devida atenção a questões de classe e desigualdade econômica. A publicação era voltada principalmente para um público de classe média, e suas abordagens tendiam a refletir as preocupações de mulheres brancas e relativamente privilegiadas, deixando de lado as experiências de mulheres pobres e trabalhadoras.
Feministas radicais, que viam a luta contra o patriarcado intrinsecamente ligada à luta contra o capitalismo, muitas vezes sentiram que suas vozes foram marginalizadas em favor do feminismo liberal promovido por figuras como Steinem. Esses grupos acreditavam que a opressão das mulheres não poderia ser totalmente compreendida ou combatida sem abordar também as desigualdades de classe.
Esses exemplos refletem uma crítica comum de que o feminismo promovido por Steinem e outras feministas liberais, embora tenha conquistado importantes vitórias para as mulheres, foi limitado em sua capacidade de englobar as complexas intersecções entre gênero, raça e classe. Isso levou ao surgimento de correntes feministas mais interseccionais, que buscam integrar as questões de raça, classe, sexualidade e outras formas de opressão ao debate feminista.
Ecos no Brasil
O ativismo feminista de Gloria Steinem teve um impacto significativo e inspirador no movimento feminista no Brasil, assim como em outras partes do mundo. Embora ela seja uma figura central no feminismo dos EUA, suas ideias, ações e a maneira como ela articulou as demandas feministas tiveram uma influência global, incluindo no Brasil.
- Divulgação das ideias feministas: A atuação de Steinem e o sucesso da Ms. Magazine ajudaram a popularizar as ideias feministas em diversas partes do mundo, incluindo o Brasil. As discussões sobre direitos reprodutivos, igualdade de gênero e a crítica ao patriarcado que Steinem promoveu foram amplamente disseminadas e serviram de base para debates no Brasil.
- Apoio à organização feminina: Steinem foi uma defensora da organização das mulheres em coletivos e grupos, algo que também se refletiu no Brasil. O movimento feminista brasileiro se fortaleceu nos anos 1970 e 1980, em parte inspirado pelas experiências e estratégias adotadas por feministas como Steinem nos Estados Unidos.
- Direitos reprodutivos: Um dos temas centrais do ativismo de Steinem, os direitos reprodutivos, também foi uma pauta importante no Brasil, onde feministas lutaram e continuam lutando pela descriminalização do aborto e pela autonomia das mulheres sobre seus próprios corpos. As discussões lideradas por Steinem ajudaram a moldar o discurso feminista no Brasil em torno dessas questões.
- Interseccionalidade e inclusão: Embora o conceito de interseccionalidade tenha sido formalmente desenvolvido por outras teóricas feministas, a prática de Steinem de apoiar diversas causas e promover um feminismo inclusivo ressoou no Brasil, onde o movimento feminista também se engajou em questões de raça, classe e orientação sexual, tornando o movimento mais diverso e abrangente.
- Literatura e publicações: A obra de Steinem e outras feministas dos EUA foi traduzida e amplamente lida no Brasil. Suas ideias influenciaram escritoras, acadêmicas e ativistas brasileiras que, por sua vez, adaptaram essas ideias ao contexto local, enriquecendo o feminismo brasileiro com uma perspectiva global.
- Mobilização Política: Steinem foi fundamental para a mobilização de mulheres na política, algo que também ocorreu no Brasil, especialmente durante o processo de redemocratização do país. O ativismo político das mulheres brasileiras, inspirado em parte pelas experiências internacionais, resultou em conquistas importantes, como a criação de secretarias de políticas para as mulheres e leis como a Lei Maria da Penha.
Embora contexto sociocultural e político do Brasil seja diferente do dos Estados Unidos, o impacto do ativismo de Gloria Steinem no movimento feminista brasileiro se reflete na maneira como as feministas brasileiras adotaram e adaptaram estratégias de organização, advocacy e comunicação para promover os direitos das mulheres.
A conexão entre os movimentos feministas globais, facilitada por figuras como Steinem, ajudou a fortalecer e diversificar o feminismo no Brasil, contribuindo para avanços significativos na luta por igualdade de gênero e justiça social no país.
Quem é Gloria Steinem
Jornalista, escritora, ativista e ícone feminista, Gloria Steinem é reconhecida como uma das líderes mais influentes do movimento feminista nos Estados Unidos durante a segunda metade do século XX. Nascida em 25 de março de 1934, em Toledo, Ohio, se formou no Smith College em 1956, e depois iniciou sua carreira como jornalista.
No final dos anos 1950 e início dos anos 1960, Steinem trabalhou para a Independent Research Service, uma organização financiada pela CIA. Esse envolvimento foi revelado publicamente nos anos 1960, e Steinem admitiu ter trabalhado como agente da CIA, defendendo sua participação ao afirmar que a agência, na época, era mais liberal e não tinha a imagem negativa que adquiriu posteriormente.
Steinem ganhou notoriedade como jornalista e se tornou uma voz importante na defesa dos direitos das mulheres. Em 1963, ela se disfarçou como uma coelhinha da Playboy para escrever um artigo investigativo sobre as condições de trabalho nas boates Playboy, o que lhe rendeu reconhecimento nacional.
Em 1972, Steinem cofundou a Ms. Magazine, uma das primeiras publicações voltadas especificamente para questões femininas, e que rapidamente se tornou um ponto de referência para o movimento feminista. A revista desempenhou um papel central na discussão de temas como os direitos reprodutivos, igualdade de gênero e a luta contra a discriminação.
Além de seu trabalho como editora, Steinem esteve profundamente envolvida em diversas iniciativas feministas. Ela cofundou o National Women’s Political Caucus, uma organização que visa aumentar a participação das mulheres na política. Ela também foi uma defensora vocal da Emenda dos Direitos Iguais (ERA, da sigla em inglês), que buscava garantir a igualdade de direitos entre homens e mulheres sob a Constituição dos EUA.
Steinem é conhecida por seu trabalho em questões de direitos reprodutivos, incluindo o direito ao aborto, e tem sido uma defensora fervorosa da autonomia corporal das mulheres. Sua experiência pessoal com o aborto na juventude moldou grande parte de sua perspectiva sobre o feminismo e os direitos das mulheres.
Nos últimos anos, Steinem continua ativa, participando de palestras, escrevendo e apoiando causas feministas. Ela foi tema de vários documentários e biografias, que exploram seu impacto no movimento feminista e na sociedade em geral. Em 2020, seu trabalho foi retratado no filme "The Glorias", que aborda diferentes fases de sua vida.
Steinem também tem sido reconhecida com diversos prêmios ao longo de sua vida, incluindo a Medalha Presidencial da Liberdade, concedida em 2013 pelo presidente Barack Obama, em reconhecimento ao seu papel na luta pelos direitos das mulheres.
Ela se casou pela primeira vez aos 66 anos, com David Bale, pai do ator Christian Bale, em 2000. David faleceu em 2003. Steinem, que sempre foi uma defensora da independência das mulheres, continuou a viver e trabalhar em prol das causas em que acredita.
Hoje com 90 anos, ela permanece uma figura central no feminismo e é amplamente respeitada como uma das vozes mais influentes na luta pelos direitos das mulheres em todo o mundo. Sua carreira é marcada por um compromisso inabalável com a igualdade de gênero e a justiça social, e seu legado continua a inspirar novas gerações de ativistas, mesmo com suas relações públicas com a CIA.