No início deste mês, a apresentadora da Talk TV (veículo de propriedade do magnata inglês Rupert Murdoch) entrevistou o parlamentar palestino, dr. Mustafa Barghouti.
Ao longo do seguimento, Hartley-Brewer gritou repetidas vezes com Barghouti enquanto ele falava sobre a guerra implacável de israel em Gaza.
Conforme Barghouti tentava responder, Hartley-Brewer gritou com ele com raiva: “Talvez você não esteja acostumado com mulheres falando, não sei!”.
Enquanto Hartley-Brewer acusava injustamente seu convidado de misoginia, Barghouti permaneceu calmo, ainda que visivelmente desconfortável. Ela conclui seu segmento dizendo novamente: “desculpe por ser uma mulher falando com você”.
O chilique de Hartley-Brewer ilustra perfeitamente a falência moral da postura do ocidente e do feminismo ocidental perante os homens palestinos, que rotineiramente desumaniza até os mais respeitados entre nós.
É tanto que raramente a mídia hegemônica sequer chega a reconhecer os homens palestinos como dignos de serem considerados vítimas da violência israelense.
Peguemos como exemplo a entrevista do jornalista Ahmed Alnaouq, que perdeu 21 membros de sua família em Gaza em decorrência de um ataque aéreo israelense em 22 de outubro. Enquanto inicialmente o apresentador do programa Good Morning Britain permitiu que Alnaouq contasse sua história e expressasse seu luto, rapidamente a conversa migrou para “os horrores cometidos pelo Hamas, uma organização terrorista”.
Alnour foi impedido de expressar sua raiva e rapidamente teve que se defender ao afirmar que existe um nítido duplo padrão perpetuado pela mídia hegemônica.
Quase dez anos atrás, a acadêmica e cofundadora da Jadaliyya (periódico do Arab Studies Institute), Maya Mikdashi, escreveu um artigo crucial intitulado “Homens Palestinos podem ser vítimas?”. Nele, Mikdashi explica que na imprensa hegemônica de massas, existe uma ênfase em mortes de civis que são “desproporcionalmente de mulheres e crianças”. Ela explica que a reiteração desses fatos perturbadores demonstra uma clara “ausência de luto pelos homens Palestinos mortos pela máquina de guerra israelense”.
Ao longo desses 104 dias de genocídio, Israel vem sistematicamente sequestrando, torturando e executando homens Palestinos e, ao mesmo tempo, os bombardeando junto de suas famílias.
Rapidamente, imagens desses homens, no que somente pode ser descrito como campos de concentração, são apresentadas como se referentes a combatentes do Hamas, sem a apresentação de qualquer tipo de evidência nesse sentido. De fato, muitos foram identificados por seus entes queridos nos vídeos e imagens de propaganda israelense, confirmando que se trata efetivamente de civis.
Desde 7 de outubro, ativistas pró-Israel vêm reiterando alegações de estupros em massa cometidos por combatentes do Hamas contra mulheres israelenses.
Apesar de veículos de comunicações palestinos já apontaram diversas falhas nessas acusações, o sucesso dessa propaganda não somente cria uma justificação para o genocídio que vêm ocorrendo contra o povo de Gaza, como também cria uma visão predatória dos homens palestinos como, na melhor das hipóteses, misóginos violentos e, na pior, predadores sexuais vorazes.
Na CNN, a deputada democrata Pramil Jayapal disse que é preciso comedimento “na incitação de ódio contra os palestinos”, ao que a correspondente da CNN, Dana Bash, respondeu: “você não vê soldados israelenses estuprando mulheres palestinas”.
O absurdo no comentário de Bash obviamente não tem qualquer respaldo na realidade. Há testemunhos horríveis de mulheres em Gaza sendo forçadas a se despir enquanto tentam evacuar com suas famílias e algumas relatam terem sido abusadas e ameaçadas de estupro, inclusive uma mulher grávida.
Não são apenas as mulheres palestinas que estão vivenciando violência sexual durante esta guerra, há também múltiplos relatos de abusos contra homens e meninos palestinos.
O Palestinian Return Centre (consultoria independente com foco na história, política e aspectos legais dos refugiados palestinos) identificou que “relatos de abuso sexual vêm emergindo cada vez mais depois que 100 homens palestinos detidos pelas forças de Israel foram despidos, vendados e obrigados a ajoelhar na rua no norte de Gaza, conforme imagens e vídeos amplamente divulgados nas redes sociais e confirmados pelo exército israelense”.
Enquanto isso, nas prisões israelenses, são muitos os relatos de homens e meninos palestinos submetidos a tortura e abusos desde 7 de outubro.
Um relato particularmente chocante veio do diretor do Departamento de Estado dos EUA, Josh Paul, a respeito de um adolescente palestino em uma prisão israelense em 2021, reportado pela organização de direitos humanos Defence for Children International Palestine.
Quando o Departamento de Estado investigou o caso, a organização de direitos humanos foi logo em seguida caracterizada pelo estado de Israel como um grupo terrorista, juntamente com outros cinco grupos e coletivos.
Um estudo conduzido pelo Comitê contra a Tortura de Israel coletou milhares de testemunhos de homens palestinos torturados pelas autoridades palestinas, incluindo torturas sexuais. O relatório demonstra que “abusos sexuais são sistêmicos”.
Esse tipo de violência sexual, por óbvio, não chega à imprensa tradicional. Homens palestinos não são vistos como vítimas de guerra, de conflitos ou de prisões injustas. A relatos de abuso praticado contra eles sempre se segue a indagação “Mas o que eles fizeram para merecer?”.
Voltando à entrevista de Hartley-Brewer com o Dr. Mustafa Barghouti, a acusação feita por ela de ele não estaria “acostumado a conversar com mulheres” não é um fenômeno recente. Nós já vimos muitas vezes como o feminismo branco é instrumentalizado para silenciar e desumanizar homens árabes e muçulmanos.
O que a entrevista também revela é o que Mikdashi descreve como a genderização desta guerra horrível:
“A massificação de mulheres e crianças como um grupo indistinguível, unificado pela semelhança de gênero e sexo, e a reprodução do corpo palestino masculino (e do corpo árabe masculino de maneira geral) como sempre perigosa”. Esse status de vítima dos homens palestinos, ela aponta, sempre acaba por ficar obscurecido.
A genderização do genocídio palestino significará que os homens palestinos muito provavelmente não terão suas histórias escutadas, sua dor reconhecida e sua tortura será categorizada como uma prática rotineira.
Cabe ao povo defensor da liberdade ao redor do mundo lembrar que esta guerra não é apenas “contra mulheres e crianças”, é uma guerra contra todo e qualquer corpo palestino que vive sob bloqueio e um cerco brutal há 16 anos e, de maneira mais ampla, contra os palestinos que lutam por sua libertação desde 1948.
Texto publicado originalmente no The New Arab.
Tradução: Maira Pinheiro.