O governo Lula 3 foi edificado com a firme crença de que seria possível uma aliança com setores ponderáveis da burguesia, especialmente a Faria Lima, e o agronegócio e, simultaneamente, ter sua correspondente no Congresso, com um pacto com o Centrão. A hipótese lulista previa que tais alianças seriam capazes de isolar o bolso-fascismo e tocar adiante um governo de transição.
Tal edifício foi assentado sobre o arcabouço fiscal, o NAF.
É um programa neoliberal, de austeridade, mas que foi habilmente vendido por Haddad e Lula como se não o fosse. O NAF foi propagandeado com a fake news de que seria possível obter déficit zero com base em forte acréscimo de receita e não com base em corte de despesas orçamentárias, sem “sacrifícios”. Tal fake news permitiu ao governo sustentar durante o primeiro ano, ainda que aos trancos e barrancos, que seria um “ajuste progressista” e foi a senha para um amplo apoio nas bases petistas, em outros segmentos e mídias de centro-esquerda.
A lógica do projeto funcionou bem na planilha. Faz-se um programa econômico neoliberal, coesiona-se o mercado financeiro e o agronegócio ao redor dele, monta-se uma base parlamentar com dominância dos representantes dos mesmos setores (o Centrão), coesiona-se a elite institucional nacional (Executivo, Legislativo e Judiciário), isola-se o bolsonarismo e tudo caminha bem com um governo “conservador soft” até a reeleição de Lula em 2026.
Mas o arranjo ajustado na planilha não sobreviveu nem até a metade do governo:
- a Faria Lima cansou de brincar de pagar impostos, depois de ter aceitado em 2023 que suas offshore passassem a pagar 15% de Imposto de Renda sobre o lucro do ano anterior, as empresas de investimento no exterior -foi o limite;
- o agronegócio unificou-se no combate ao governo Lula. No fim de semana, ao participar de evento do grupo de lobby Esfera, no Guarujá, o dono do Grupo Cosan, um dos dez maiores bilionários do país, abriu fogo contra o governo: disse que o arcabouço fiscal operado pela equipe econômica quer “aumentar furiosamente a receita” e declarou, “não dá”. Declaração de um apoiador de Lula em 2022, que se recusa a pagar impostos. Um líder bolsonarista do agronegócio O presidente da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), João Martins, foi além, num almoço em Brasília com a FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária). Ele revelou ter recusado convite de Lula para uma reunião e decretou: "vamos dar um basta nesse governo”;
- a Globo e outras mídias liberais começaram a soprar o apito cada vez com mais força.
No Congresso, o Centrão, além de vocacionar o mau humor destes setores, que representa, tem um apetite inexcedível. Nem mesmo os bilhões das emendas impositivas conseguiram saciar Lira e sua turma. Lira reclamou desde o fim do primeiro trimestre de 2023, de maneira cada vez mais agressiva, que o governo precisava entregar nacos ainda maiores de poder à força política que Lula pretendia ter como sustentáculo. Lira queria e quer a Saúde e, se possível, a Educação. Ainda mais. Quer alguém do Centrão no Planalto, no lugar do ministro da Secretaria de Relações Institucionais (SRI), Alexandre Padilha. Para Lira, é incompreensível que o Planalto seja reservado apenas ao PT (Padilha, Rui Costa, Macedo e Pimenta, agora enviado ao Sul). Pode parecer que ele não tem simpatia pessoal por Padilha, tamanhas as descortesias. Mas, não. A questão não é pessoal. Lira exige alguém da sua confiança ali. Mais que isso, Lira pretende arrancar do governo Lula o compromisso de apoiar o nome que escolheu para sucedê-lo na Câmara, Elmar Nascimento (UB-BA), inimigo jurado de Rui Costa.
Como o governo reluta, Lira retornou sua aliança histórica com o bolsonarismo e tem imposto derrota sobre derrota ao governo no Congresso. Quem caminha pelos corredores do Congresso e conversa com as principais lideranças parlamentares de centro-esquerda e esquerda, como fiz nos últimos dois dias, sente o clima de desalento.
Todo o edifício está desabando e a planilha colapsou.
Em vez de isolar o bolsonarismo num canto puxando para si a Faria Lima, o agro, a Globo e o Centrão, o governo Lula está nas cordas, ele sim isolado, sob fogo cerrado.
Não parece haver, neste momento, “animus impichando” na burguesia nem no Centrão. Querem Lula de joelhos, mas não fora da Presidência, pelo menos até o momento.
Isso quer dizer que o governo Lula deve implementar o seguinte programa: 1) acabar com os pisos constitucionais da Saúde e da Educação (o que Haddad está providenciando); 2) desvincular reajuste das aposentadorias e benefícios previdenciários do reajuste do salário mínimo (tudo indica que está a caminho); 3) num segundo momento, eliminar o reajuste real do mínimo; 4) garantir obediência da “bancada haddadista” no BC ao fim da política de reduções graduais na taxa de juros pelo menos até o fim do primeiro trimestre de 2025; 5) apoiar Elmar Nascimento para a sucessão de Lira (ainda incerto) e 6) colocar um nome do Centrão no lugar de Padilha no Planalto e no lugar de Nísia Trindade no Ministério da Saúde.
Quanto a este último item, Lira sabe que não será algo sem precedentes e, portanto, é um objetivo realizável. Em março de 2007, no início de Lula 2, a SRI foi ocupada por Walfrido dos Mares Guia, do PTB (depois ele transferiu-se para o PSB); entre setembro de 2007 e novembro de 2009 quem ocupou o cargo foi ninguém menos do que José Múcio, que foi muita coisa na vida, menos do PT: foi da Arena, do PDS, do PFL, do PSDB, do PTB e, agora, do PRD. Lira sabe que dá.
A mesma coisa na Saúde. Marcelo Castro e José Saraiva Felipe, ambos do MDB, já foram ministros da Pasta nos governos Lula 1 e Dilma 2.
O que fará o presidente? Um giro à esquerda ou encaminhará seu governo mais para a direita?
Até agora sua política econômica é neoliberal e o governo mantém relações de hostilidade com alguns dos segmentos mais relevantes para sua eleição e para a sustentação histórica do PT (MST, professores e funcionários das Universidades e Institutos Federais, funcionários do IBAMA e ICMBio, além de cientistas e ambientalistas, entre outros). Irá mudar?
Depois de meses de negativas, o ministro da Fazenda anunciou nesta quarta-feira (12) que irá propor a Lula o fim dos pisos constitucionais da Saúde e Educação, conforme os planos de sua Pasta desde o início do governo. Haddad, ecoando o que Simone Tebet tem reiterado abertamente, dará cumprimento integral ao programa do mercado, uma vez fracassada a estratégia de sustentar o arcabouço pelo incremento das receitas. E se Lula não aceitar? Ou melhor: há hipótese de Lula não aceitar?
E um giro à esquerda? Lula retomaria a aliança fundamental com os que o elegeram? Vale lembrar que a luta eleitoral não foi apenas contra Bolsonaro, mas contra a aliança bolsonarismo + Centrão. O governo deixaria de hostilizar seu eleitorado e base, cujo exemplo mais recente é a recusa às negociações salariais com os trabalhadores da educação e do meio ambiente e o acolhimento às reivindicações da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal que? Lula passaria a comunicar-se com o eleitorado que o elegeu em redes nacionais de rádio e TV e por outros meios, afrontando a hegemonia da Globo e demais mídias conservadoras/liberais? E, sobretudo, romperia com a lógica neoliberal do NAF? Correria o risco de governar sob fogo permanente da burguesia, da extrema direita e da direita -o que, em certa medida, está acontecendo neste momento. Correria o risco de governar em minoria no Congresso -o que, também em determinada medida, está acontecendo neste momento. Ousaria abandonar a estratégia atual pela estratégia de Gustavo Petro?
São as perguntas sobre o futuro do governo Lula em meio a uma tempestade armada pelo próprio governo desde sua gênese.