Dia desses fui assistir à excelente cantora Carla Mariani e seu parceiro, o multi-instrumentista Tanauan. Especialistas do gênero, eles tocaram a linda “Back-Water Blues”, blues lançado em 1927, pela seminal cantora americana Bessie Smith, atribuída, conforme dito pela própria Carla, à enchente do Rio Mississipi daquele mesmo ano.
Mariani ainda completou que, cem anos depois, nós, brasileiros, vivíamos tragédia semelhante, desta vez no Rio Grande do Sul. Fui atrás da história e descobri que a canção, de fato, virou uma espécie de hino sobre a tragédia do Mississipi, mas que, na verdade, foi lançada um mês antes da famosa enchente sobre uma outra semelhante, ocorrida em 1926 em Nashville, Tennessee.
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Segundo o historiador e musicólogo, David Evans, Smith já era naquele momento uma cantora muito famosa. “Back-Water Blues” foi lançada no exato instante em que explodia a tragédia do Mississipi, fato que colaborou para que a canção fosse eternizada e tivesse inúmeras regravações ao longo da história.
Dia seguinte ao show de Carla e Tanauan acordo com a discussão do ultradireitista Flávio Bolsonaro (PL) com Fabiano Contarato (PT) na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado, sobre a política de cotas. O filho do ex-presidente fazia troça da proposta da ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, de priorizar nas emergências no Rio Grande do Sul a famílias ciganas, quilombolas e de terreiros para ações emergenciais no Sul.
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Contarato, de forma magistral, lembrou ao senador – e a todos nós – que "quando a ministra faz isso é porque se todo mundo é prioridade, ninguém é prioridade. É simples assim. Dentro desse crime ambiental que temos, temos sim um racismo ambiental", reiterou.
"Quem é primeiro atingido vai ser a população que mais sofre. Não que os brancos não sofram. Não tenho dúvidas. Mas tem que ter uma prioridade diante de quem mais sofre", disse Contarato e ainda acrescentou: "É a realidade desse país desigual. É racismo estrutural. Vai estudar história".
Olhar a história
A recomendação para que olhemos a história serve a todos. A canção de Bessie Smith, feita há cem anos, nos alerta para um problema, de fato, secular. “Back-Water Blues” não foi exceção. Tanto a enchente do rio Mississippi quanto a do rio Cumberland, no Tennessee, em 1926, afetaram desproporcionalmente os negros.
É Evans ainda que lembra a terrível consequência daquelas tragédias. A inundação de Cumberland “forçou até dez mil pessoas, a maioria afro-americanos, a abandonarem as suas casas”. Ele cita – e não se trata de mera coincidência com o nosso caso aqui no Brasil – que o fenômeno foi causado por políticas habitacionais que “consignaram muitos residentes [negros] para áreas baixas”, tornando as suas casas mais suscetíveis a inundações.
A face mais cruel disto tudo é reiterada por outro historiador, Richard M. Mizelle, Jr. Esta mesma política habitacional fez com que mais de 90% das vítimas das cheias de 1927 fossem negras, particularmente porque estava associada à distribuição desigual de ajuda humanitária e à “demanda de trabalho”. O fato, lembra o historiador, deu aos “brancos locais a autoridade para forçar os afro-americanos a qualquer tipo de trabalho que quisessem”, completa de maneira fulminante.
E foi assim, quase feito mágica, que uma triste e linda canção lançada há quase cem anos, reiterou a corajosa fala de Contarato. E, sobretudo, nos mostrou de maneira nua e crua o tamanho da exclusão e perversidade com que operam de maneira secular Flávio Bolsonaro e sua turma.
Os tempos, mesmo que a gente não perceba, se comunicam.
Ouça "Black-Water Blues" abaixo: