Durante 1987/88 fiz em Brasília, na qualidade de jornalista da Folha de S.Paulo, a cobertura da Constituinte. Experiência inesquecível. Uma de minhas principais fontes na Esplanada dos Ministérios era Antônio Carlos Magalhães, o ACM, todo poderoso ministro das Comunicações de José Sarney. Uma raposa. Um político com faro único para o poder.Ele foi taxativo, em uma das longas aulas sobre política que me ministrou: “Quando o inimigo é forte eu vou combater e tentar derrotar, e uso muitas estratégias e emboscadas. Se é muito forte, às vezes posso até fazer aliança para derrotar mais adiante. Agora, se o inimigo é fraco, não vacilo: destruo sem dó nem piedade. Aí o terreno fica livre”.
A Faria Lima, a direita (Centrão), a mídia liberal e a extrema direita parece que frequentaram as aulas de ACM.
A estratégia da “frente amplíssima” está em aparente colapso, o governo está cada dia mais fraco e os inimigos estão se aproveitando para atacar sem tréguas.
Frente amplíssima é diferente de frente ampla, diga-se. Frente ampla (ou razoavelmente ampla) é a que levou Lula à vitória eleitoral. Reuniu a federação PT, PCdoB e PV mais a federação PSOL e REDE e mais o PSB, com Geraldo Alckmin embarcado e como vice, além de alguns partidos pequeninos. No segundo turno, somaram-se basicamente o MDB de Tebet e o PDT. Do outro lado, a extrema direita e o Centrão. Depois da vitória e da posse, nacos do Centrão incorporaram-se à frente, que se tornou então “amplíssima”.
A tese, especialmente depois do 8 de Janeiro, indicava ser necessário isolar Bolsonaro e sua tropa para garantir a democracia num governo de concessões. Tais concessões seriam inevitáveis, ademais, pela correlação de forças numa Câmara dividida grosso modo em três terços: a centro-esquerda, o Centrão e a extrema direita. Na planilha, estava tudo certo: atraía-se o Centrão, compunha-se um bloco de dois terços e o governo seria o sucesso que o presidente Lula cantou em prosa e verso em 2023.
Mas a vida é sempre mais que as planilhas. Mesmo antes de ir à vida concreta do poder exercido no cotidiano, o próprio “excel” do governo mostrava o risco do projeto: bastaria o Centrão voltar a se compor com a extrema direita, o que havia feito desde a derrocada de Dilma, para os dois terços tornarem-se um terço.
A planilha lulista foi apresentada ao segmento minoritário da esquerda “rebelde” como inescapável, com o reforço racional e aparentemente ponderado da tal “correlação de forças”. Sem direito a ponderações, pois “é o que tem para hoje”. Resultado da regra dos terços: o governo foi sendo empurrado mais e mais para a direita, a ponto de José Dirceu qualificá-lo no fim de abril deste ano como de centro-direita.
Sem confrontações, sem disputas com o Centrão, a Faria Lima ou com a mídia liberal, apenas com concessões sobre concessões, abandonando sua base eleitoral à própria sorte, o governo Lula foi fragilizando-se mais e mais.
O governo foi ocupado pelo Centrão sem qualquer compromisso de apoio efetivo; o ministro das Minas e Energia representa as petroleiras, as mineradoras, as empresas de gás; o ministro do Agricultura é o embaixador do agronegócio dentro do governo, que passou a desprezar e hostilizar o MST; o ministro da Defesa é um um quase interventor militar na Esplanada, enquanto os ministros da Fazenda e Planejamento são representantes dos interesses da Faria Lima à frente da política econômica, executando com afinco a orientação fiscalista. Enquanto isso, os professores e professoras das universidades federais, um dos berçários do PT, foram e estão sendo tratados a pontapés..
Neste quase ano e meio, o Planalto e seus representantes hostilizaram todos e todas que fizeram advertências sobre o equívoco da estratégia e da planilha. Até meados do segundo semestre, os governistas desfilavam garbosos com os números das pesquisas de opinião, com alguns resultados enganosos na economia, com programas sociais que eram apenas repetição do que havia sido feito no começo do século. As “sumidades” do Planalto trataram os críticos com desprezo, considerando-os aprendizes da política, incapazes de tratar dos temas sérios e circunspectos da gestão do Estado e da alta política. Até que a realidade invadiu a planilha, a partir de meados do segundo semestre
A conta chegou
As últimas semanas foram apavorantes para o governo.
A mídia liberal e a Faria Lima perderam a paciência, porque querem mais, cada vez mais. É cada dia mais estridente a campanha pelo fim dos pisos constitucionais da saúde e educação, pelo fim da vinculação do reajuste das aposentadorias e benefícios da Previdência de acordo com o salário mínimo e mesmo pelo fim do reajuste real do salário mínimo. Tudo isso com o apoio da área econômica do governo. Os haddadistas no Banco Central passaram a vocalizar abertamente que a era das quedas microscópicas da taxa Selic chegou ao fim e que, portanto, os bilionários, milionários, muito ricos e ricos podem respirar tranquilos, pois os juros escorchantes que recebem pelos títulos da dívida pública estão garantidos. Nada disso foi suficiente, entretanto. Alunos de ACM, querem a rendição completa. O Globo, dos Marinho, aliados de ACM por décadas, publicou editorial sob o significativo título “São Paulo mostra a Brasília como fazer ajuste de gastos” -ou seja: “Tarcísio mostra a Lula como fazer ajuste de gastos”.
Os tempos do “Xandão da democracia” começaram a esvair e o ministro Alexandre de Moraes parece ter atendido à ordem unida de Temer, retornando ao seu natural ethos conservador. O símbolo da nova-velha fase foi a absolvição de Sérgio Moro pelo TSE, dia 22. A ela qual deve seguir-se a absolvição de Jorge Seif. Nesta altura, nem mesmo a prisão de Jair Bolsonaro é certa.
E sobreveio a noite de terça-feira (28). O governo foi esmigalhado e sua base dissolveu-se nas votações de uma série de vetos presidenciais. Não sobrou pedra sobre pedra.
Vale destacar duas questões em especial.
1. O veto de Jair Bolsonaro - foi o veto mais antigo a ser submetido aos parlamentares. Em 2021, Bolsonaro vetou trechos relativos aos crimes contra o Estado Democrático de Direito na LSN (Lei de Segurança Nacional), entre eles o que previaprisão por até cinco anos por disseminação de fake news em eleições. A derrota foi contundente: 317 deputados votaram a favor do veto e apenas 139 pela derrubada. Há um aspecto particularmente grave neste caso. Em tese, a “frente amplíssima”, em que pese as divergências nos temas econômicos, deveria estar solidamente unida na defesa da democracia. O Centrão, portanto, deveria estar ao lado de Lula e do governo nas iniciativas para restringir ações golpistas e antidemocráticas. As fake news estão no alto da prateleira destas agressões contra a democracia. Lira já vinha sinalizando estar roendo a corda há meses, quando empurrou para as calendas a discussão do projeto sobre regulamentação das redes sociais. Agora, foi o golpe mortal. Centrão e extrema direita unidos na defesa das fake news. O pilar da “frente amplíssima” caiu.
2. Números do veto de Lula às saídas temporárias e do veto da fake news - não me estenderei no tema das saídas, sobejamente conhecido. Interessa aqui examinar o placar das duas votações. O veto de Lula foi derrubado por 314 votos a 126 na Câmara e 52 a 11 no Senado. Foram 317 votos na Câmara para manter as fakes news. Ou seja: para o número mágico de 342 para aprovação de um pedido de impeachment na Câmara, faltariam apenas ao redor de 25 votos. Considerando que havia algo como 50 ausentes nas votações, se fosse mantida a proporção da distribuição dos votos com todos presentes (o que costuma ocorrer em momentos cruciais), o bloco extrema direita + centrão poderia somar mais 30 votos, chegando a algo como 347, cinco mais que o necessário para abertura do pedido de impeachment - no caso de Dilma, foram 367 votos pela abertura. Sabemos apenas do cenário do Senado no caso da votação do veto às saídas. Como o veto das fake news foi mantido na Câmara, não subiu para a Câmara Alta, o que só ocorre no caso de um veto derrubado. 52 senadores votaram pela derrubada - 11 a mais que o necessário para aprovar o impeachment de um presidente da República (no caso de Dilma, foram 62 votos).
Na jugular
A sequência de ofensivas contra Lula deixaram a nu a fragilidade do governo. E a extrema direita, sempre sedenta por sangue e golpe, lançou-se ao frenesi como os cardumes de piranhas.
Um dos mais relevantes líderes da extrema direita, em que pese o desprezo míope a ele dedicado por segmentos da esquerda, Nikolas Ferreira, colocou o tema na mesa, no seu perfil no ex-Twitter: “Confesso que hoje me deu uma curiosidade de como seria um impeachment do Lula no Congresso…”. Simultaneamente, Carla Zambelli convocou um ato “Fora Lula” para 9 de junho em São Paulo. É notória a capacidade de mobilização da extrema direita. Não falo em 135 mil pessoas, como no ato de Bolsonaro-Malafaia de fevereiro. E se acorrerem 50 mil à convocação? Obviamente o cenário sofrerá outro agravamento.
Ao mesmo tempo, a Faria Lima exige de Haddad providências urgentes para cortar gastos públicos em profusão, sob risco de retirar o apoio que lhe dedicou caninamente desde a posse. A mídia liberal ensaia uma nova rodada ao estilo mensalão, Lava Jato, prisão de Lula, impeachment de Dilma… Arthur Lira ri e afia a faca.
O clima era de intensa preocupação nesta quarta-feira no Planalto. Desde o início do governo Lula, é a primeira vez que acontece. Até agora todo e qualquer interlocutor que apresentasse ponderações críticas era tratado com desprezo olímpico, agressividade ou até corte de relações. A surpresa aparenta ser genuína com o cenário que um mínimo de distanciamento fazia entrever no horizonte há tempos.
Que fazer? Começa a busca aos supostos culpados, praxe em crises de governo, a conversa sobre a urgência e uma reforma ministerial vem à baila… Mas o que prevalece é a surpresa.
Até agora, nenhum questionamento à “estratégia da planilha”.
Enquanto isso, os inimigos seguem os ensinamentos de ACM.