OPINIÃO

Sionismo cristão: da Grã-Bretanha do século XIX às manifestações bolsonaristas - Por Francisco Fernandes Ladeira

No final dos anos 70, o sionismo cristão chega ao Brasil a partir da “terceira onda pentecostal”, ou “neopentecostalismo”, como mais uma estratégia de domínio estadunidense sobre nosso país, por meio do soft power

Manifestação de Jair Bolsonaro na avenida Paulista.Créditos: Rovena Rosa/Agência Brasil
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Na última manifestação bolsonarista, realizada no dia 25 de fevereiro, na Avenida Paulista, entre os múltiplos devaneios da extrema direita, chamou bastante a atenção o grande número de “patriotas cristãos” empunhando a bandeira de Israel (país cuja religião oficial, como sabemos, não aceita Jesus como Messias).

Apesar do (aparentemente) estranhamento, as cenas em questão remetem ao chamado “sionismo cristão”, movimento que surgiu na Grã-Bretanha do século XIX (sendo, inclusive, anterior ao tradicional “sionismo” de Theodor Herzl).

Para compreender o sionismo cristão, é fundamental analisar o contexto histórico britânico, cerca de duzentos anos atrás. Lembrando Eric Hobsbawm, a “Era das Revoluções” trouxe significativas transformações culturais no continente europeu, como a migração campo-cidade e a expansão de direitos, gerando desconforto nos setores conservadores, que viam o “mundo tradicional” (como estavam acostumados) aos poucos se diluindo para dar espaço para o “mundo moderno”.

Essa mudança de valores, pensavam, seria indício de que o fim dos tempos estaria próximo. Além disso, nessa mesma época, abalando as tradicionais crenças cristãs, o “liberalismo teológico” propunha novas leituras sobre a Bíblia; não como “a palavra de Deus”, mas como uma obra composta por simbolismos e alegorias.

Acuados por este cenário ameaçador – com novos valores e leituras bíblicas alternativas – muitos cristãos se apegaram fervorosamente aos preceitos religiosos, seja propondo interpretações cada mais fundamentalistas da Bíblia (literalismo hermenêutico), seja buscando formas de melhor lidar com o apocalipse iminente.

Nessa abordagem engessada do livro sagrado do cristianismo, para que ocorresse o “fim dos tempos”, era preciso a restituição do antigo Reino de Israel na Terra Santa, a conversão dos judeus ao cristianismo e, consequentemente, a segunda vinda do Messias. Um terreno fértil para doutrinas escatológicas (relacionadas aos acontecimentos do fim dos tempos) como o dispensacionalismo e o milenismo. Surgia assim o sionismo cristão.

Apesar de seu viés religioso, o sionismo cristão também foi instrumentalizado pela política externa da Grã-Bretanha, pois, de acordo com algumas profecias presentes em doutrinas escatológicas, o Reino de Israel, com o retorno dos judeus à sua terra, seria instaurado por uma potência marinha ocidental (no caso, a própria Grã-Bretanha, em sua missão civilizatória, eufemismo para “imperialismo”).

Nesse sentido, o oficial do exército George Gawler esboçou um plano para “restaurar os judeus na sua terra” (sem motivações religiosas, obviamente), mas para criar uma zona tampão segura para os britânicos entre o Egito e a Síria. Não por acaso, entre os notórios sionistas cristãos estava ninguém menos do que Arthur James Balfour, secretário de Assuntos Estrangeiros, responsável pela famosa Declaração Balfour, que apresentava o apoio de Londres à criação de um Estado Judeu na Palestina.

Não demoraria muito para o sionismo cristão cruzar o Atlântico e chegar aos Estados Unidos da América, no século XX, divulgado por igrejas pentecostais e neopentecostais (principalmente por meio do televangelismo, que posteriormente também chegaria ao Brasil). Por lá, já havia uma forte associação entre os peregrinos, fundadores da nação, e os judeus: dois povos em êxodo, que cumpririam um “destino manifesto” para se apossar de uma “terra prometida”.

Com a criação do Estado de Israel, em 1948, após a proposta da ONU em dividir a Palestina em um estado árabe e um estado judeu, caberia aos Estados Unidos o posto de potência marinha ocidental defensora do Reino de Israel. Criou-se, então, o mito fundador do sionismo cristão na América: Washington desempenharia o papel que Ciro, o imperador persa, teve na restauração dos judeus a Sião, pois Deus escolheu o país dos puritanos pela sua “superioridade moral”.

Já a ascensão dos movimentos contraculturas e a expansão dos direitos civis, ambos na década de 1960, levaram os sionistas cristãos a radicalizarem suas interpretações literais da Bíblia. Afinal de contas, para estes setores, aumento de direitos para minorias sociais não são “conquistas democráticas”, mas “sinal do fim dos tempos”.

Na mesma época, a Guerra dos Seis Dias (1967), quando os israelenses expandiram seus domínios para todo o território palestino que constava na partilha sugerida pela ONU duas décadas antes, foi percebida pelos sionistas cristãos como “cumprimento das profecias”. Tal como os cananeus foram derrotados pelos hebreus dos tempos bíblicos, os judeus contemporâneos derrotaram os árabes. Logo, sob essa ótica, o fortalecimento do Estado de Israel é central para o propósito redentor de Deus.

Nesse diálogo religião-geopolítica, as constantes intervenções dos Estados Unidos no Oriente Médio são concebidas como batalhas espirituais, ocultando, consequentemente, os interesses econômicos de Washington e aliados nessa região (sobretudo o acesso privilegiado a seus recursos naturais).

No cenário interno, o sionismo cristão, por meio do ativismo evangélico, foi fundamental nas eleições dos presidentes republicanos Ronald Reagan, George Bush (pai), George Bush (filho) e, principalmente, Donald Trump (responsável por reconhecer oficialmente Jerusalém como capital israelense, decisão vinculada por muitos religiosos aos eventos da volta de Jesus).

Por fim, no final dos anos 70, o sionismo cristão chega ao Brasil a partir da “terceira onda pentecostal” ou “neopentecostalismo”, como mais uma estratégia de domínio estadunidense sobre nosso país, por meio do soft power.

No entanto, esse movimento religioso se fortaleceu com a ascensão do bolsonarismo. Para os militantes de extrema direita, a ampliação de direitos, após a “ditadura comunista e ateia do PT”, sinaliza a proximidade do fim dos tempos (portanto a necessidade da reconstituição do Reino de Israel com a segunda vinda de Cristo).

Já no âmbito institucional, Bolsonaro promoveu uma política externa de intensa aproximação à Israel e só não transferiu a embaixada brasileira naquele país para Jerusalém, como fez Donald Trump, porque a falta de coragem para cumprir suas promessas de campanha é uma das principais características do ex-presidente. Ainda nessa linha, há a constante atuação da Bancada Evangélica em favor dos interesses de Israel (o que representa uma ameaça para a própria soberania diplomática do Estado brasileiro).

Evidentemente, o fenômeno do sionismo cristão, em suas contradições e diferentes facetas, é muito mais complexo do que o esboçado neste texto. Também é importante frisar que eu não busquei apresentar questões religiosas como as principais motivações para as políticas externas das diferentes nações que interagem no cenário geopolítico global. Em última instância, o objetivo das “potências marinhas ocidentais” não é o cumprimento das profecias (embora há quem acredite nisso), mas garantir os interesses do grande capital.

*Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em Geografia pela Unicamp.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.