NOVA ORDEM

Presença em Gaza mostrou ao mundo a face real da ocupação israelense – Por Francisco Fernandes Ladeira

A estratégia da vez é representar a ofensiva israelense em Gaza como uma “política de governo” e não como realmente é: uma “política de Estado”

Gaza.Créditos: Reprodução/Twitter
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A frase que intitula este artigo, dita pelo dirigente do grupo Hamas, Khalil al-Yahya, em recente entrevista à emissora iraniana Press TV, resume bem o que tem sido a geopolítica palestina desde a Operação Dilúvio de Al-Aqsa, ocorrida no dia 7 de outubro de 2023, quando o Hamas (com apoio de outras organizações da resistência palestina) protagonizou uma contraofensiva à ocupação israelense.

Conforme a história nos mostra, pelo menos desde a segunda década do século passado, quando teve início a grande onda migratória de judeus europeus para a região da Palestina, culminado com a criação do Estado de Israel, em 1948, sionismo é sinônimo de limpeza étnica e reiterados crimes contra a humanidade.

Aliás, o próprio plano de partilha da Palestina, proposto pela Organização das Nações Unidas (ONU), com dois Estados independentes (um judeu e outro palestino), jamais foi visto por Israel como possibilidade de convivência pacífica entre duas nações na Palestina; mas como ponto de partida para dominar toda a região, “do rio ao mar”. De fato, foi o que ocorreu nas últimas sete décadas de expansão territorial israelense.

No plano militar, essa expansão foi garantida pela expressiva força bélica do exército israelense em comparação a seus vizinhos árabes. No âmbito diplomático, as atrocidades cometidas por Israel tiveram como principal fiador os Estados Unidos, o que garantiu a Tel Aviv a “prerrogativa” de não cumprir todas as resoluções da ONU relacionadas à ilegal expansão territorial e ao genocídio do povo palestino.

Além disso, ao longo dos anos, a chamada “imprensa ocidental” – liderada pelas grandes agências de notícias internacionais, como United Press International, Agence France Press e Reuters – ocultou da grande maioria das audiências planetárias os múltiplos crimes sionistas. Assim, foram criadas narrativas que noticiaram as anteriormente citadas “limpeza étnica da Palestina” e “expansão territorial” como se fossem “defesa de Israel”. Por outro lado, qualquer forma de resistência palestina é sumariamente rotulada como “terrorismo”.

Mas a grande manobra discursiva para minar qualquer tipo de posicionamento contrário ao Estado de Israel é associar seus críticos (antissionistas) ao ódio ou aversão aos judeus (antissemitismo). Nada mais distante da verdade, pois Israel não representa os judeus (tal como os fascistas não representavam os italianos) e o movimento sionista jamais se opôs aos maiores antissemitas de todos os tempos: os nazistas. Basta uma breve pesquisa no Google sobre o Acordo Haavara, por exemplo, para constatar.

Mesmo sendo falacioso, durante muito tempo esse discurso impediu vozes progressistas de denunciarem o caráter racista, supremacista e colonial do Estado Israel, sob o medo de “cancelamento” por “antissemitismo”. Consequentemente, parcela considerável da esquerda se calou (e ainda se cala) sobre o genocídio do povo palestino.

No entanto, se com a distribuição de informações pelo planeta nas mãos de poucos veículos era relativamente fácil esconder as atrocidades cometidas por Israel, haja vista que a narrativa criada pela mídia ocidental era a “versão oficial” dos fatos, tudo mudou com a popularização do acesso à internet.

Se a desproporcional reação israelense à Operação Dilúvio de Al-Aqsa é “o primeiro genocídio na história da humanidade sendo transmitido ao vivo pelo criminoso de guerra”, conforme denunciam entidades palestinas mundo afora, também é “o primeiro genocídio em que as vítimas têm a oportunidade de mostrar ao mundo seu sofrimento”. Como escreveu Nadia Issa Amer, em comentário no Instagram, “[Gaza] mostrou ao mundo o que Israel faz há 76 anos na região. Desta vez, palestinos tinham celulares para gravar imagens”.

Portanto, torna-se cada vez mais difícil sustentar “argumentos” como “defesa de Israel” e “caça aos terroristas do Hamas”, quando praticamente todo o planeta tem acesso, via imprensa alternativa na internet, às imagens da Faixa de Gaza que retratam perdas materiais e, sobretudo, humanas. Lembrando novamente Khalil al-Yahya, a atual presença do exército israelense em Gaza, responsável pelo maior deslocamento do povo palestino desde 1948, mostrou ao mundo a face real da ocupação sionista.

Ironicamente, os mesmos meios de comunicação, antes fundamentais para construir uma “opinião pública global” favorável a Israel, hoje nos mostram o que é (e sempre foi) o sionismo: uma ideologia similar ao apartheid, ao fascismo e ao nazismo.

Diante dessa realidade, a imprensa hegemônica brasileira (uma das mais pró-sionistas do planeta) tem estrategicamente alterado seus discursos (pelo menos aparentemente). Um editorial do Estadão, com o sugestivo título “O Hamas venceu”, trouxe as seguintes palavras: “Israel começou a guerra com a solidariedade internacional e um consenso sobre seu direito de defesa. Em pouquíssimo tempo – horas até, em alguns casos – o 7 de Outubro foi esquecido e consolidou-se outro consenso: o de que a reação de Israel é ‘desproporcional’. Hoje Israel está isolado, e para grande parte da opinião pública global sua guerra é indefensável”.

Seguindo essa linha, editorial da Folha de São Paulo, com o também sugestivo título “Israel se isola: tragédia da guerra em Gaza faz até EUA deixarem de apoiar o Estado judeu na ONU”, apontou que “o apoio a Israel esmaeceu, com a notável exceção de seu real fiador, os Estados Unidos. Mas a pressão do eleitorado americano, que vai às urnas em novembro, acabou por colocar os rivais Joe Biden e Donald Trump numa mesma posição: Netanyahu precisa parar”.

Mesmo o comentarista da GloboNews para o Oriente Médio, Guga Chacra, o descendente de árabes mais sionista da grande mídia brasileira, disse que os recentes acontecimentos em Gaza representam uma “catástrofe humanitária” e “não tem argumento para não ter um cessar-fogo”.

Uma análise precipitada e ingênua sobre os parágrafos anteriores diria que Estadão, Folha de São Paulo e GloboNews, enfim, estariam admitindo “a face real da ocupação israelense”. Mas as coisas não funcionam assim.

Parafraseando o dito popular, para quem saber ler a mídia, a ideologia que está por trás dos noticiários internacionais, um pingo é letra. A estratégia da vez é representar a ofensiva israelense em Gaza como uma “política de governo” – personalizada na figura nefasta de Benjamin Netanyahu – e não como realmente é: uma “política de Estado”, com o supracitado projeto de limpeza étnica.

Consequentemente, cria-se a falsa impressão de que, se Netanyahu e seu partido de extrema direita, o Likud, saírem do poder, logo a “maior democracia do Oriente Médio” voltará à sua “normalidade pacífica”. Se este tipo de discurso será tão bem-sucedido como outrora, é outra questão.

Em suma, como se pôde constatar ao longo deste texto, não seria exagero afirmar que, no presente contexto, a internet é um importante ator e instrumento geopolítico. Não devemos subestimar sua força. Caso não existisse a rede mundial de computadores, e as imagens do genocídio em Gaza correndo o planeta, independentemente dos noticiários da grande imprensa, dificilmente estaríamos falando em “isolamento de Israel frente à chamada opinião pública”.

Não por acaso, a campanha de banimento do TikTok dos Estados Unidos tem, como um dos principais motivos, o fato de essa rede social, ao contrário de seus congêneres, não censurar postagens favoráveis à causa palestina. De acordo com informações do jornal digital Axios, entre 23 e 30 de outubro de 2023, as postagens pró-Palestina no aplicativo chinês obtiveram quatro vezes mais visualizações do que os posts pró-Israel.

Desse modo, tal como a ordem geopolítica pós-Guerra Fria, baseada no domínio ocidental (com a liderança estadunidense) está em ruínas, podemos dizer que uma “nova ordem informacional” também está sendo gestada.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.