As aproximações entre o Estado de Israel, políticos de extrema direita (de diferentes países) e setores evangélicos (sobretudo neopentecostais) têm preocupado analistas da esquerda. E com razão, pois se trata de uma perigosa aliança que coloca em xeque não apenas a laicidade estatal, mas também os preceitos democráticos, as liberdades individuais e os direitos das minorias sociais (ou até mesmo suas existências).
Como todo fenômeno obscuro, primeiramente, devemos procurar entendê-lo, para, posteriormente, combatê-lo. Neste caso, não é tarefa fácil. A aliança citada no título deste artigo compreende complexos fatores políticos, econômicos, culturais, geopolíticos, psicanalíticos e, naturalmente, religiosos.
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Evidentemente, não proponho uma resposta definitiva para todas as questões envolvidas, mas acredito que quatro pontos são fundamentais para começarmos a analisar as relações entre Israel, extrema direita e evangélicos. São eles: 1) O sionismo cristão; 2) A teologia do domínio; 3) O choque de civilizações e 4) O “Deus mau” do Antigo Testamento.
A seguir, apresento algumas características desses quatro pontos.
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Sionismo cristão
De forma sucinta, podemos definir o sionismo cristão como a crença (difundida principalmente por evangélicos neopentecostais) que aponta como precondições para a segunda vinda de Jesus o retorno dos judeus à Terra Santa (com o estabelecimento do Estado de Israel) e a consequente expulsão dos “gentios” de Jerusalém (no caso, os palestinos). Trata-se, portanto, de uma versão invertida das chamadas Escrituras (que indicam que o Reino de Israel seria restabelecido após a volta do Messias, e não o contrário).
Embora remeta à Inglaterra do século XIX, o sionismo cristão ganhou força política nos Estados Unidos, com o governo Trump, e no Brasil durante os quatro anos de Bolsonaro na presidência. Não por acaso, ambos tinham como objetivo estreitar relações diplomáticas com Israel e transferir suas respectivas embaixadas naquele país de Tel Aviv para Jerusalém (reivindicada pelo Estado sionista como sua capital).
O sionismo cristão nos ajuda a entender, por exemplo, as excursões organizadas por pastores evangélicos para Jerusalém, o grande número de bandeiras de Israel na última manifestação bolsonarista, realizada no dia 25 de fevereiro na Avenida Paulista, e a polêmica colocação da cantora Baby do Brasil, durante o carnaval baiano, sobre a proximidade do apocalipse (pois, como Israel já se concretizou, estão dadas as condições para o “fim dos tempos”).
Teologia do domínio
Israel não atende apenas às aspirações espirituais da extrema direita e de setores neopentecostais. A aliança com o Estado sionista também envolve questões muito mais mundanas, como a premissa de que as leis religiosas devem reger a vida pública, o que corresponde à chamada teologia do domínio (ou dominionismo).
Como explicou o professor da UERJ João Cezar de Castro Rocha, em entrevista para o ICL Notícias, as igrejas neopentecostais, nos últimos quinze anos, paulatinamente substituíram a teologia da prosperidade (ascensão financeira como benção divina) pela teologia do domínio. Assim, essas instituições religiosas passaram a não ser mais as “igrejas de Cristo”, pois Jesus (que já era contraditório com a teologia da prosperidade) não tem nenhum tipo de relação com a teologia do domínio – baseada no domínio político e na imposição violenta da própria fé sobre todos aqueles que pensam diferente.
Consequentemente, há uma transferência radical do Novo para o Antigo Testamento, como o livro sagrado a ser seguido; principalmente na figura do Rei Davi, o “senhor do exército”, segundo líder do Reino Unificado de Israel. “A extrema direita transnacional encontrou em Davi um modelo: o do pecador ungido. Davi representa a força da espada, não a força da palavra, do amor e da compaixão. Aquele que não se preocupa com o outro, que ignora seu semelhante. Para a extrema direita transnacional, Trump, Bolsonaro, Milei, Netanyahu e Orbán são ungidos, pois são pecadores. Então a extrema direita retorna à Israel, à Jerusalém e, sobretudo, a Davi. Com essa concepção de política, a única possibilidade é a retórica do ódio, a desumanização do outro e a repetição de massacres. O modelo do império das armas”, afirma Castro Rocha.
Por sua vez, o doutor em Ciência da Religião, Pietro Nardella-Dellova, advertiu, em entrevista para o “Congresso em Foco”, que os discursos de Michele Bolsonaro (para muitos já cotada como presidenciável para 2026) são baseados na teologia do domínio, a partir da necessidade de reconstrução do mundo (e da própria vida humana) segundo os valores cristãos. Ou seja, na subordinação do Estado de acordo com sua fé.
“Por um bom tempo fomos negligentes ao ponto de dizer que não poderiam misturar política com religião. E o mal tomou e o mal ocupou o espaço. Chegou o momento, agora, da libertação.[...] Eu acredito em um Deus vivo. Um Deus todo poderoso que é capaz de restaurar e curar a nossa nação. Não desistam, mulheres, homens, jovens, crianças. Não desistam do nosso país. Continue orando, continue clamando porque eu sei que o nosso Deus, do alto dos céus, irá nos conceder um socorro”, afirmou a ex-primeira dama, em sua cruzada contra a laicidade estatal, durante a anteriormente mencionada manifestação bolsonarista de 25 de fevereiro.
Diante dessa realidade, não custa lembrar que, no longínquo 1998, Brizola profetizava: “Se os evangélicos entrarem na política, o Brasil irá para o fundo do poço, o país retrocederá vergonhosamente e matarão em nome de Deus”. Conforme as estatísticas sugerem, em menos de uma década, os evangélicos poderão ser maioria na população brasileira e, consequentemente, entre os cidadãos aptos a votar.
É claro que “evangélico” é uma categoria heterogênea e complexa. Mas é bom ficarmos em alerta!
Choque de civilizações
Israel também está presente na atual cruzada do Ocidente contra o islamismo, calcada na hipótese conhecida como “choque de civilizações”, proposta pelo cientista político estadunidense Samuel Huntington. Esta questão foi muito bem colocada por Breno Altman, em vídeo no seu canal Opera Mundi.
Grosso modo, o “choque de civilizações” parte do pressuposto que, no cenário geopolítico pós-Guerra Fria, as fontes de conflitos não seriam mais razões ideológicas ou econômicas, mas questões de ordem cultural, sobretudo as rivalidades entre civilizações.
Desse modo, segundo Huntington, o islamismo seria a única resistência à hegemonia ocidental, representado pelos Estados teocráticos (notadamente o Irã) e grupos políticos-militares como o Hezbollah e o Hamas. “Naquela época (anos 90), imaginava-se que a Rússia e a China tendiam à plena restauração capitalista e ao domínio da civilização ocidental, comandada pelos Estados Unidos”, lembrou Altman.
Ao contrário das previsões de Huntington, China e Rússia se apresentaram como potências rivais do Ocidente, que, por sua vez, tem passado por um paulatino declínio, sobretudo após a crise capitalista de 2007/2008.
Nesse conturbado contexto, como chama a atenção Breno Altman, tanto nos países centrais, quanto nas nações periféricas do capitalismo, começaram a despontar correntes de extrema direita vinculadas à defesa dos principais pilares ocidentais: o sistema capitalista e os valores judaico-cristãos (o que nos leva novamente ao Antigo Testamento).
Isto posto, quem melhor representaria essa cruzada do Ocidente contra o islamismo, levada a cabo pela extrema direita global? Obviamente, o Estado de Israel, que, por sua localização geográfica, é a ponta de lança do Ocidente em seu enfrentamento com o Oriente (principalmente a civilização muçulmana). Assim, o histórico antissemitismo (ódio aos judeus) da extrema direita é trocado pelo pró-sionismo (defesa incondicional do Estado de Israel).
“Depois aos anos 70 do século passado, quando o campo sionista passa para o comando de sua ala mais radical, o Estado de Israel foi abrigando referências essenciais para a lógica da extrema direita: ultraliberalismo, militarização, colonialismo, racismo e teocracia disfarçada”, conclui Altman.
O “Deus mau” do Antigo Testamento
Às discussões sobre as relações próximas entre neopentecostais, extrema-direita e Estado de Israel podemos adicionar o conteúdo do livro “O Dogma de Cristo”, do psicanalista, filósofo e sociólogo Erich Fromm.
Em sua obra, Fromm, tal como a corrente religiosa conhecida como gnosticismo, parte da tese de que, na Bíblia, livro sagrado do cristianismo, estão presentes “dois deuses”; completamente diferentes: o “Deus mau”, do Antigo Testamento; e o “Deus bom”, referente ao Novo Testamento.
De fato, não é difícil constatar que, no Antigo Testamento, Deus é vingativo e rancoroso; responsável direto pelo extermínio de todos aqueles que não seguiam seus ditames. Em contrapartida, no Novo Testamento, Deus é amor, benevolente, perfeito, justo e misericordioso.
Desse modo, a partir dos preceitos psicanalíticos, calcados nos antagonismos entre pai e filho, Erich Fromm compreende Jesus (o “Deus bom”) como a negação do pai: o “Deus mau”. Não por acaso, o Novo Testamento tem início, justamente, com o nascimento de Jesus.
Esse “Deus mau”, do Antigo Testamento (o “Deus de Israel”), é atualmente a grande referência para as pregações de pastores de igrejas neopentecostais (qualquer semelhança com a supracitada teologia do domínio não é mera coincidência).
Além disso, também não é coincidência o fato de o “Deus mau” ter atitudes que se assemelham a políticos genocidas de extrema direita, seja em relação ao processo de limpeza étnica de povos considerados “inimigos” (como faz Benjamin Netanyahu), seja na maneira negacionista como conduzem um país em um contexto de crise sanitária (Jair Bolsonaro e Donald Trump, por exemplo).
*Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em Geografia pela Unicamp.