DEBATE RACIAL

Perspectivas africanas sobre pardos: os mestiços brasileiros - Por Beatriz Bueno

Não existe meio humano. Você é quem é. Em África "não higienizamos o sangue", não excluímos nenhum antepassado

Passarinho da Sankofa.Créditos: Reprodução
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Um dos grandes desafios que enfrentamos no Brasil é a falta de foco da jornada dos negros em resgatar suas raízes. Em sua maioria, ela se volta não para a África, mas para os Estados Unidos.

Abordamos a importância de resgatar as raízes africanas, mas existe uma lacuna: a falta de ídolos africanos em nosso meio, bem como a escassez de consumo de cultura e literatura provenientes de países africanos. Ao invés disso, nossas referências negras são majoritariamente norte-americanas, influenciando aspectos diversos como o hip hop, a moda, a música, o ativismo político e até mesmo a identidade racial, querendo abolir identidades mestiças. No entanto, algumas práticas, como o uso de perucas lisas por mulheres negras e pardas em detrimento de seus cabelos naturais crespos e cacheados, pouco contribuem para o fortalecimento do orgulho afro.

Em minha jornada em defesa da Parditude e do direito dos pardos brasileiros de se reconhecerem como mestiços, cruzo com pessoas africanas que são muito receptivas às minhas reivindicações. Todas as pessoas africanas com as quais entrei em contato não acreditam que pessoas mestiças de ascendência negra devam se identificar apenas como negras.

Minha primeira parceria foi com Amanda Kissua, uma migrante africana, mulher negra nascida em Angola e residente em Curitiba. Com especialização em comunicação, com ênfase em Comunicação Cultural e Interculturalidade, Amanda, de uma perspectiva africana, identifica uma certa confusão no Brasil quando se tenta impor que os mestiços sejam categorizados como negros. Ela destaca a importância de aplicar o conceito africano de Sankofa para nós, que simboliza o resgate do passado. Sankofa é ilustrado pelo desenho de um pássaro olhando para trás, representando a necessidade de recordar os erros do passado para evitar que se repitam no futuro.

Na postagem em parceria que fizemos, ela disse: “Talvez você não seja apenas negro, talvez você não seja apenas branco ou indígena. O anseio em pertencer é intrínseco do ser humano e também uma urgência, e por isso que nós enquanto humanos buscamos conexões genuínas em busca de aceitação mesmo e em pertencer porque é de fato uma urgência. Mas nós não conseguimos pertencer por inteiro, quando não nos aceitamos por inteiro.(...)”

A comunicadora também critica a pauta, importada dos EUA de ‘Apropriação Cultural’, ela diz: “O uso de traços não é exclusivo das nossas culturas africanas. Não estou nem aí pras tranças da Virgínia, quem quiser que faça as suas. (...) Enquanto mulher preta africana posso dizer que a grande maioria de nós africanos não se importa nem tampouco se sente ofendido por ver pessoas não africanas ou simplesmente brancas usarem símbolos e itens que fazem parte da nossa cultura.”

Outra sorte foi cruzar com Abiola Akandé Yayi. O Príncipe Nago, pertencente à família Yayi e à linhagem Ifàá de Sábéé, reside no Brasil a mais de uma década. Ele é um africano que redescobriu suas raízes. Arquiteto e Urbanista de profissão, também atua como despertador de consciências.

Servindo a esse lindo propósito, ele também é um apoiador da Parditude e fez um texto muito interessante sobre o tema com o título “Não Existe Meio Humano”. No artigo ele compartilha sua jornada de reconciliação com suas origens étnicas, destacando sua descendência fon e nago, e como essas duas linhagens históricas tiveram conflitos.

Ele ressalta a importância de honrar todas as suas raízes, sem negar parte de sua ancestralidade, mesmo diante de injustiças passadas. Reflete sobre a necessidade de aceitar e integrar todas as partes de si mesmo, rejeitando a ideia de uma identidade parcial. O autor enfatiza a importância de reconhecer e respeitar todos os antepassados, inclusive os de origem europeia, como parte essencial de sua própria existência. Além disso, ele critica abordagens de militância que promovem o auto ódio e a divisão, incentivando em vez disso a construção de algo positivo.

“Não existe meio humano. Você é quem é. E se você não tiver satisfeito com seus antepassados brancos, procure fazer melhor que eles para mostrar que não é uma fatalidade ser descendente deles, mas não negue parte de você senão devolva o sangue de brancos que corre nas suas veias e te faz viver. Em África nós não higienizamos o sangue, não excluímos nenhum antepassado,” diz Abiola.

No YouTube, recebo comentário de africanos sempre muito empáticos. Num dia, um dos seguidores comentou e deixou a bandeira de Angola:

Me emocionei com tamanha generosidade, tendo em vista que atualmente muitos negros brasileiros não costumam ter essa empatia com nós descendentes.

É importante ressaltar que essa perspectiva não representa necessariamente o consenso de todos os africanos, dada a vastidão e diversidade da África, com diferentes países e culturas. No entanto, considero que essas visões oferecem insights valiosos para um processo de cura e integração, alinhados com o que defendo como uma consciência mestiça.

Em uma sociedade marcada por influências neocoloniais, a questão que se impõe é: continuaremos a olhar para os Estados Unidos, a maior potência neocolonial do planeta, como nossos novos colonizadores, ou realmente nos comprometeremos em resgatar nossas raízes africanas? É fundamental refletirmos sobre qual caminho desejamos seguir.

Quantas vezes já fui constrangida por pessoas, dizendo com arrogância que pardo não existe e que sou “light skin”. Ué? Dizem que não devemos usar “pardo” porque é o termo que o colonizador inventou. E light skin é o que? O novo colonizador dominando seu espaço com sucesso.

Optar por resgatar nossas raízes e cultura africanas não apenas implica em reconhecer com amor os ancestrais africanos, cuja história foi brutalmente tirada de nós, mas também em aceitar nossa narrativa completa e rejeitar a dominação cultural e ideológica imposta pelos países ocidentais colonizadores. É um chamado para uma profunda transformação em nossas mentalidades e práticas culturais, visando uma identidade mais autêntica e integrativa. A decisão está em nossas mãos: perpetuar a hegemonia neocolonial ou abraçar uma jornada de redescoberta e reconexão com tudo que a África tem para nos ensinar.

*Beatriz Bueno é comunicadora, escritora, ativista parda e pesquisadora de Cultura na Universidade Federal Fluminense (UFF).

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.