Bob Marley está em alta novamente com o lançamento do filme biográfico "Bob Marley: One Love", já alcançou uma impressionante receita global de bilheteria, totalizando cerca de US$ 150 milhões até o momento. O filme mostra, em alguns trechos, que Bob Marley era um homem imerso em questões profundas e conflituosas de identidade devido à sua origem mestiça. Esta é uma parte da história de Bob Marley que não é muito conhecida, mas que é de grande relevância para nós, brasileiros, principalmente pardos, prestarmos atenção. A mãe de Marley, Cedella Booker, era uma mulher preta de ascendência afro-jamaicana, enquanto seu pai, Norval Marley, era um homem branco, soldado de origem britânica.
As discussões acerca de qual seria a identidade mais adequada para pessoas mestiças de ascendência branca e negra têm ganhado destaque, especialmente diante das recentes controvérsias envolvendo a não aprovação de pessoas pardas em processos de heteroidentificação. No contexto brasileiro e também na perspectiva global, influenciada pelos conceitos de negritude dos Estados Unidos, indivíduos com fenótipo semelhante ao de Bob Marley são geralmente aceitos como negros sem dificuldades. No entanto, é interessante notar que a percepção da identidade racial varia significativamente em diferentes contextos culturais e no contexto jamaicano, a história é diferente.
No livro "I&I: The Natural Mystics: Marley, Tosh and Wailer", fundamentado em entrevistas com pessoas próximas ao artista, é descrito que quando Bob Marley se mudou para Trench Town em Kingston aos 13 anos, foi considerado branco. Essa fase de sua vida foi marcada por apelidos depreciativos e perseguições. Rita, a viúva de Bob Marley, revela no mesmo livro que, sensibilizado pela pressão social e pelos desafios decorrentes de sua pele mais clara e traços, chegou ao extremo de pedir à sua esposa, que "passasse graxa em seu cabelo para torná-lo mais escuro; mais africano".
Esse relato, relacionado ao racismo direcionado ao corpo mestiço, têm grande analogia com as vivências dos pardos brasileiros. Podemos observar essa semelhança tanto no fato de que historicamente as pessoas pardas buscam embranquecer-se na busca pelo ideal branco, quanto na versão mais contemporânea destes fatos, em que pardos, assim como Bob Marley, procuram escurecer-se para integrar movimentos políticos negros que, atualmente, não reconhecem identidades mestiças como legítimas. Contudo, Bob Marley, amparado por sua espiritualidade da cultura rastafari, encontra uma solução muito interessante para esses conflitos.
Em uma entrevista, Marley disse: "Não tenho preconceito comigo mesmo. Meu pai é branco, minha mãe é preta, me chamam de mestiço, ou algo assim. No final, não estou do lado de ninguém. Não estou do lado dos negros, nem dos brancos. Eu estou do lado de Deus, aquele que me criou e me fez filho de branco e preto. Estou aqui para gerar a união". Essa ideia reflete perspectivas que já são encontradas em autores latino-americanos do que seria uma consciência mestiça.
Consciência mestiça é um conceito delineado por Gloria Anzaldúa, escritora de origem latino-americana, que introduziu essa ideia em sua obra "Borderlands/La Frontera", explorando as complexidades das identidades híbridas e as fronteiras culturais. Marley, mesmo que inconscientemente, personificou essa consciência mestiça ao rejeitar 'escolher um lado' de suas ascendências e aceitar que seu corpo é fronteiriço, ao mesmo tempo, ele abraça a responsabilidade de promover justiça pela parte de seus ancestrais que foi historicamente oprimida. Ou seja, embora Bob tenha declarado ‘não estar do lado dos negros’, sua vida foi uma jornada dedicada à luta pela igualdade, pelos direitos das pessoas negras e também à conexão com suas raízes africanas.
Bob nos ensina que, sendo um homem mestiço, não precisa se afirmar negro para defender os negros, ele pode fazer isso afirmando o que realmente é. E sua afirmação é, na verdade, uma forma de ecoar a ideologia rastafari de buscar o fim das guerras, das polarizações e celebrar a unidade, a união, o fim da crença de separação entre nós. Esse conceito também está presente em outras tradições religiosas, como o budismo, por exemplo.
Bob compreende que ser mestiço de povos que viveram e vivem tensões históricas é uma oportunidade de se comprometer com a justiça e a paz. Impulsionado por sua religiosidade, tornou-se um exemplo anti-polarização para além da identidade mista, unindo até mesmo políticos rivais em um show que fez na Jamaica, colocando-os de mãos dadas e abençoando.
Este homem não era mestiço por acaso; ser mestiço é uma missão. Abraçar a Consciência Mestiça significa abraçar uma responsabilidade. Um lado de nossa ancestralidade dominou o outro, promovendo violência e superioridade. Essa batalha continua até hoje. Que escolha e ação estamos tendo agora para que no futuro nossos descendentes não sofram ou oprimam como nossos ascendentes?
A mensagem de Bob ressoa: “Até que a filosofia que sustenta uma raça superior e outra inferior seja finalmente abandonada, tudo será guerra.”
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.