As maiores marcas de moda do mundo, H&M and Zara, usam algodão ligado a grilagem de terras, desmatamento ilegal, violência, violações de direitos humanos e corrupção no Brasil.
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A fibra que está costurada a essa lista de crimes é cultivada no Cerrado do oeste da Bahia por dois dos maiores representantes do agronegócios do Brasil: SLC Agrícola e Grupo Horita.
Essa associação escandalosa entre crimes e as roupas que vestimos foi revelada pelo relatório Crimes na Moda: a ligação dos gigantes do varejo europeu com algodão 'sujo' vindo do Brasil, produzido pela organização sem fins lucrativos britânica Earthsight e divulgado nesta quinta-feira (11).
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Luz sobre o desmatamento no Cerrado
Desmatamento e violações ambientais no Brasil, especialmente na Amazônia, têm sido notícia por anos. Mas pouco se fala sobre o Cerrado, bioma ao sul da Amazônia, igualmente ameaçado.
A Earthsight recorre a investigações detalhadas para expor crimes ambientais e sociais, injustiças e as conexões com o consumo global.
No caso do algodão brasileiro, a investigação revelou um ciclo de desmatamento, corrupção e violência e deixou à mostra a urgência de regulamentações mais rigorosas e a responsabilidade das empresas em garantir práticas éticas em suas cadeias produtivas.
Após um ano de investigação, descobriu-se que grandes marcas de moda, como H&M e Zara, estão indiretamente ligadas a essas destruições por meio do uso de algodão proveniente de empresas envolvidas em desmatamento e grilagem de terras na região.
O Cerrado é rico em biodiversidade e vital para milhões de pessoas, mas a expansão do agronegócio tem devastado suas áreas. Empresas como SLC Agrícola e Grupo Horita estão no centro desse problema, com históricos de desmatamento ilegal e conflitos fundiários. Ações judiciais e multas têm sido aplicadas, mas a destruição continua.
A conexão com marcas globais se dá por meio de fornecedores asiáticos que compram algodão dessas empresas brasileiras. H&M e Zara são as principais compradoras desse algodão, o que acaba nas prateleiras de lojas ao redor do mundo.
Por gerações, as comunidades tradicionais viveram em harmonia com a natureza. No entanto, mais recentemente, essas comunidades estão vendo suas terras serem roubadas e vêm sofrendo ataques de produtores gananciosos, apenas interessados nos mercados globais de algodão.
Eivado de crimes, mas com selo de "ético" e bênção real
O algodão contaminado nas cadeias de suprimento da H&M e da Zara é certificado como "ético" pelo maior esquema de certificação de algodão do mundo, o Better Cotton Iniciative (BCI), que não conseguiu detectar as ilegalidades cometidas pela SLC e pelo Grupo Horita.
A BCI faz parte do projeto Textile Exchange junto com outras 15 iniciativas e programas similares: Algodão Brasileiro Responsável (ABR), Algodão Sustentável e3®, Algodão feito na África (CmiA), Algodão feito na África Orgânico (CmiA-orgânico), Fairtrade, Fairtrade Orgânico, Certificação Internacional de Sustentabilidade e Carbono (ISCC), myBMP, Algodão Orgânico, Algodão Reciclado, Algodão REEL, Algodão Regenerativo (ROC™), Algodão em Conversão ("Transicional" nos EUA), EUCOTTON – Orgânico e o Protocolo de Confiança do Algodão dos EUA.
Esse projeto global do qual a BCI faz parte foi lançado em maio de 2017. Naquela ocasião, 13 das empresas de moda e têxteis mais conhecidas assinaram um compromisso coletivo. O compromisso foi elaborado por um pequeno grupo de direção que incluía a Unidade de Sustentabilidade Internacional, Marks & Spencer, The Soil Association, Textile Exchange, Levi Strauss & Co. e Kering na presença do então príncipe de Gales, agora rei Charles III.
Charles chegou a discursar durante uma reunião de alto nível sobre "algodão sustentável" na Academia Britânica, em St. James, Londres. Ele afirmou que a produção de algodão está "muitas vezes associada ao esgotamento dos suprimentos locais de água e ao uso generalizado, e por vezes indiscriminado, de pesticidas prejudiciais [que] podem ter um grande impacto na saúde humana".
O atual rei da Inglaterra disse ainda que as mudanças climáticas só piorariam a situação, com temperaturas mais altas e mudanças nos padrões de chuva provavelmente causando escassez de água mais severa em regiões importantes de cultivo de algodão. Ele também destacou que o algodão está enfrentando aumento nos custos de produção e volatilidade de mercado, tornando difícil para os agricultores ganharem um sustento decente.
Só esqueceu de acompanhar a cadeia de suprimentos de marcas de moda, como H&M e Zara, que ostentam selo de "sustentável" com a bênção real e sem a mínima conexão com a realidade.
Em março de 2018, a Textile Exchange assumiu a gestão dessa iniciativa e criou o Desafio do Algodão Sustentável de 2025. De acordo com a página do projeto, trata-se de "um catalisador para direcionar o mercado para o uso de algodão cultivado utilizando práticas agrícolas com resultados aprimorados de sustentabilidade ambiental e social".
Marcas brasileiras não estão isentas de problemas
Essa realidade absurda não é novidade nem está restrita às marcas globais. Aqui no Brasil a situação também é lastimável. A 6ª edição do Índice de Transparência da Moda Brasil (ITMB), lançada em dezembro de 2023, revelou um progresso lento nas 60 maiores marcas de moda do Brasil, especialmente em áreas críticas como desmatamento, descarbonização e diversidade.
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O ITMB, iniciativa do Instituto Fashion Revolution Brasil, avaliou as principais marcas e varejistas do mercado brasileiro com base em mais de 250 indicadores relacionados a direitos humanos, igualdade de gênero e racial, e descarbonização.
Apesar da crescente preocupação com a perda da biodiversidade brasileira, especialmente em biomas como a Amazônia e o Cerrado, a transparência das marcas de moda em relação ao desmatamento zero e práticas de agricultura regenerativa ainda é insuficiente.
Enquanto 43% das marcas divulgam políticas de biodiversidade e conservação, apenas 8% implementam práticas de agricultura regenerativa e 10% têm compromissos mensuráveis para desmatamento zero.
O fracasso do setor de moda em monitorar e garantir a sustentabilidade e a legalidade em suas cadeias de suprimento de algodão significa que os governos dos mercados consumidores ricos precisam regulamentar tais cadeias. Uma vez regulamentado, esse conjunto de regras deve ser rigorosamente implementado.
Seja um revolucionário da moda
Esse caso do algodão cultivado no Cerrado e estampado por crimes é um dos temas que merecem reflexão durante este mês de abril, quando é realizada a Semana Fashion Revolution.
A iniciativa do Fashion Revolution, o maior movimento ativista de moda do mundo, celebra a décima edição em 2024. O evento propõe reunir pessoas de todo o país para discutir como revolucionar a moda, tornando-a uma indústria justa e transparente para todos, tanto para as pessoas quanto para o planeta.
Este ano, a Semana Fashion Revolution ocorre de 15 a 24 de abril. Trata-se de um marco no ativismo da moda global. Inspirada pela tragédia na fábrica Rana Plaza em Bangladesh, que ocorreu em 24 de abril de 2013.
A semana da revolução da moda pretende aumentar a conscientização sobre os impactos sociais e ambientais da indústria da moda. Com mais de 80 países participando, o evento oferece uma série de ações ativistas, debates e eventos para impulsionar mudanças positivas no setor.
Temas imbricados: clima, raça e gênero
O tema deste ano é "Como revolucionar a moda: clima, raça e gênero", que tem o objetivo debater sistemicamente as interseções da moda com questões climáticas, raciais e de gênero.
A semana inclui workshops, discussões, campanhas nas redes sociais e eventos presenciais e busca promover a transparência, ética e sustentabilidade em toda a cadeia de produção da moda.
As atividades envolvem uma variedade de atores sociais, incluindo governantes, sociedade civil, líderes comunitários, estudantes, acadêmicos e a própria indústria da moda. A proposta é é questionar as práticas convencionais e impulsionar mudanças em direção a um modelo de produção que garanta os direitos humanos e da natureza.
Com uma programação colaborativa em todo o Brasil, a Semana Fashion Revolution oferece oportunidades para que todos se envolvam na transformação da moda em uma força positiva, colocando o planeta e as pessoas em primeiro lugar.
Confira a programação aqui.
* Iara Vidal é jornalista e pesquisadora independente dos encontros da moda com a política, jornalista da Revista Fórum e representante do Fashion Revolution Brasil no Distrito Federal.