OPINIÃO

Marielle: O fio da justiça no labirinto - Por Jean Wyllys

Por que Domingos Brazão gozou até o último domingo de impunidade e liberdade? Por causa de sua relação com a família Bolsonaro e as máfias paramilitares e neopentecostais que controlam o Estado do Rio de Janeiro

Grafite em homenagem a Marielle Franco em São Paulo.Créditos: Wikimedia Commons
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O fio da justiça começou no último domingo (24 de março) - Dia do Direito à Verdade - a recompor os tecidos da democracia e a nos recompor a todas e todos que lutamos para que este fio não se rompesse e se fortalecesse no Brasil. Ainda que não tenhamos toda verdade nem tenha sido feita ainda toda a justiça, as forças democráticas da república representadas pelo presidente Lula da Silva, que derrotou o extremista de direita Jair Bolsonaro nas eleições de 2022, já têm, tal qual Tezeu da mitologia grega, o fio de Ariadne para sair do labirinto que entrou a fim de desvendar os assassinatos políticos da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL-RJ) e seu motorista Anderson Gomes perpetrados em 14 de março de 2018 - este medonho Minotauro que, entre outras monstruosidades, garantiram a vitória eleitoral da extrema direita naquele ano.

Dez dias após o aniversário de seis anos daqueles assassinatos que mudaram a história do país, no Dia do Direito à Verdade, a Polícia Federal (há apenas um ano sob a gestão democrática do presidente Lula) prendeu aqueles que, segundo suas rigorosas investigações, são os três primeiros mandantes do assassinato de Marielle Franco. São eles: os irmãos Chiquinho e Domingos Brazão - deputado federal e conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, respectivamente - e Rivaldo Barbosa, chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro e nomeado para este cargo um dia antes dos assassinatos.

A presença de Barbosa entre os supostos arquitetos do crime político que ele mesmo deveria investigar é a grande novidade, uma vez que a família Brazão - amiga e parceira política da família Bolsonaro - já havia sido citada pela imprensa como envolvida no assassinato meticulosamente planejado da vereadora de esquerda.

Primeira esquina do labirinto: as supostas motivações 

De acordo com o novo ministro da Justiça do governo Lula, Ricardo Lewandowski, responsável pela atuação da Polícia Federal, as investigações indicam que a regulação fundiária seria uma das motivações do assassinato da parlamentar.

Segundo o relatório das investigações da PF, Marielle e os irmãos Brazão teriam opiniões divergentes sobre o uso de terras na cidade do Rio de Janeiro. Antes de ocupar uma cadeira na Câmara Federal a partir de 2022, Chiquinho Brasão (do partido de direita União Brasil) havia sido vereador da cidade do Rio de Janeiro reeleito para a mesma legislatura (2017-2020) em que Marielle Franco se elegeu pela primeira, mas também (devido a seu assassinato) última vez.

O relatório da PF diz que Chiquinho Brazão demonstrava “descontrolada reação” à atuação de Marielle Franco na Câmara de Vereadores em relação ao Projeto de Lei 174 de 2016 que dispunha sobre o uso de terrenos e direito à moradia. "Ela se opunha justamente a esse grupo que, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, queria regularizar terras para usá-las com fins comerciais, enquanto o grupo da vereadora queria utilizar essas terras para fins sociais, fins de moradia popular", explicou o ministro da Justiça.

Contudo, até então, o nome de Chiquinho Brazão não havia aparecido nas investigações sobre o assassinato político de Marielle Franco, ao contrário do de seu irmão, Domingos Brazão, um dos conselheiros do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, arrolado como um dos mandantes dos crimes desde 2019. Por que, apesar disto, Domingos Brazão gozou até o último domingo de impunidade e liberdade? Por causa de sua relação com a família Bolsonaro e as máfias paramilitares e neopentecostais que controlam o Estado do Rio de Janeiro e por integrar a extrema direita que ascendeu ao poder central nas eleições de 2018 e controlou o país até a frustrada tentativa de golpe militar de 8 de janeiro de 2023, perpetrada pouco depois da posse de Lula da Silva como presidente da República.

Nas eleições de 2018 (ano da execução de Marielle Franco), Chiquinho Brazão, como outros representantes da extrema direita, elegeu-se deputado federal pelo Avante e se reelegeu em 2022 pelo União Brasil. Ele contou com total apoio da família Bolsonaro durante as eleições, ao ponto de o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho mais velho de Jair Bolsonaro, participar de carreatas ao lado dos irmãos Chiquinho e Domingos Brazão.

O atual diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, reforçou o que foi dito pelo ministro Lewandowski. Segundo eles, a atuação de Marielle pelo uso de terras para criação de moradias populares mobilizou os suspeitos a planejarem o seu assassinato já a partir de 2017.

Em seu relatório, consta que "a atuação de Marielle consistia em ações conjuntas com entidades e movimentos sociais, de modo a conscientizá-los acerca de seus direitos e da necessidade de se organizarem para terem seus pleitos atendidos. Para tal, seu mandato contava com a parceria do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública – NUTH nas ações de apoio à população sobre a defesa do direito à moradia”.

Segunda esquina do labirinto: os interesses em comum entre os Brazão e os Bolsonaro

O senador Flávio Bolsonaro financiou - e lucrou com - a construção ilegal de prédios erguidos pelas mafias paramilitares usando dinheiro público obtido por meio de um esquema de corrupção apelidado pela imprensa neoliberal de “rachadinha” (o parlamentar empregava funcionários fantasmas e/ou obrigava seus assessores a lhe entregar mais da metade de seus soldos mensais): é o que revelam documentos antes sigilosos e dados levantados pelo Ministério Público do Rio de Janeiro aos quais teve acesso a site de jornalismo independente The Intercept.

As investigações começaram durante o governo de seu pai, Jair Bolsonaro, que conseguiu paralisá-las ao pressionar seu então ministro da Justiça e hoje senador prestes a ser cassado por corrupção eleitoral, Sergio Moro (União Brasil - SP), a trocar o diretor da Policia Federal por outro que protegesse seu primogênito. Sergio Moro, para quem não se lembra, foi o juiz da extinta e desmoralizada Operação Lava Jato que conduziu ilegal e injustamente Lula da Silva à prisão, facilitando a eleição do extremista Jair Bolsonaro, de quem ganhou o cargo de ministro da Justiça.

Durante sua gestão como ministro da Justiça de Bolsonaro, Sergio Moro fez absolutamente nada para avançar nas investigações sobre o assassinato político de Marielle Franco, contando com o apoio indispensável da imprensa neoliberal que não apenas o santificava como não lhe dirigia qualquer cobrança sobre essa indiferença.

Moro sabia que Domingos Brazão, quando deputado estadual, havia sido juntamente com Flávio Bolsonaro (então deputado estadual) os únicos na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro a votarem contra a formação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre as máfias paramilitares (mais conhecidas em todo país como “milícias”) que controlam a maior parte do território do Rio de Janeiro e estão arraigadas nas estruturas do Estado como tumores malignos em metástase. Moro sabia disto e nada fez para deter Domingos Brazão, que responde a processos por homicídio, abuso de poder econômico e corrupção - crimes perpetrados em sua relação umbilical com as milícias, das quais saiu Ronnie Lessa, um dos sicários que executaram o atentado contra Marielle Franco e que delatou seus contratantes imediatos.

Terceira esquina do labirinto: o disfarce do mal radical

O terceiro arquiteto do assassinato de Marielle Franco preso no domingo, Dia do Direito à Verdade, foi o chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Rivaldo Barbosa, que, dias após os assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes, em reunião com as famílias das vítimas, chegou a chorar com elas e lhes garantir que elucidaria o crime, quando, na verdade, estava no cargo para fazer o contrário. Mais: de sua mente diabólica teria saído todo o plano do atentado político.

O caso do delegado Rivaldo Barbosa não é um caso de “banalização do mal” no sentido em que a filósofa Hannah Arendt dá a esta expressão, cunhada por ela para se referir ao comportamento do arquiteto do holocausto Adolf Eichmann. Barbosa não pode, como o fez Eichmann durante seu julgamento, alegar que estava cumprindo ordens superiores e obedecendo as leis de seu país. O delegado não é o burocrata que perpetra o mal por seu vazio de pensamento ou pela recusa em pensar nas consequências éticas de seus atos sob uma ditadura, o que configuraria a banalidade de seu mal. Não, seu mal é tão radicalmente consciente de si ao ponto de se disfarçar para agir.

“Não descansaremos enquanto este crime não esteja solucionado", disse ele a mim e aos demais membros da Comissão Externa da Câmara dos Deputados criada por requerimento meu para acompanhar as investigações sobre o atentado político. À época, eu estava em meu segundo mandato como deputado federal e já sob ameaças de morte e violenta difamação perpetradas pela extrema direita. Notei algo estranho naquele sujeito. Para mim, suas lágrimas não lhe caíam bem. Soavam como canastrice. Elas entretanto convenceram as famílias das vítimas, que caíram chocadas com sua prisão no último domingo; afinal, elas estavam há seis anos esperando o cumprimento dessa promessa.

O delegado Rivaldo Barbosa foi militar da Aeronáutica por 15 anos, em boa parte do tempo atuando na área de previsões meteorológicas. Entrou para a reserva em 2002, quando passou no concurso para delegado da Polícia Civil.

A quarta quina do labirinto: o golpe parlamentar e a intervenção militar

O delegado tomou posse como chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro um dia antes do atentado político contra a vereadora Marielle Franco por indicação dos generais Walter Braga Netto e Richard Nunes, respectivamente o interventor da Segurança Pública no Rio de Janeiro durante o governo de Michel Temer e o secretário de Segurança durante o período.

A intervenção militar no Rio Janeiro, após o Carnaval de 2018, por ordem do presidente Michel Temer foi uma desastrosa jogada eleitoreira de sua parte para tentar recuperar sua popularidade e se apresentar como candidato da direita às eleições presidenciais daquele ano. Michel Temer era o vice-presidente que traiu a presidenta Dilma Rousseff no golpe parlamentar que esta sofreu em 2016 e que a destituiu do cargo sob o disfarce de um impeachment por “crime de responsabilidade”. Rousseff - hoje presidenta do banco dos Brics indicada pelo atual presidente, Lula da Silva - foi inocentada de todas as acusações.

Michel Temer, por ser um traidor, gozava de assombrosa impopularidade apesar de toda a propaganda que a imprensa neoliberal lhe concedia. Sabendo que a segurança pública era uma das questões que mais afligiam a população brasileira, ele decidiu usá-la para alavancar sua popularidade. Escolheu o Rio de Janeiro - espécie de vitrine do país - para fazer sua intervenção militar sem se preocupar, nem levar em conta, de que o Rio de Janeiro é um narco-estado cujos territórios e instituições públicas estão divididas e controladas por organizações criminosas. O comandante do Exército sugeriu a Temer, como interventor, o general Braga Netto. A intervenção militar foi um tiro pela culatra para Michel Temer.

A esta altura do jogo - dois anos após o golpe contra Dilma Rousseff - os oficiais das Forças Armadas que dele participaram tão ativamente quanto a imprensa neoliberal já queriam uma chapa presidencial “puro sangue” (feita só por militares do mesmo grupo de herdeiros da ditadura que durou de 1964 a 1985). Um candidato muito mais popular que Temer eles já tinham: Jair Bolsonaro. O capitão reformado e parlamentar do baixo clero, há três décadas, que emergiu da malta que golpeou Dilma Rousseff como o grande condutor dos ressentimentos, medos, ansiedades e ódios das nova e velha classes médias, bem como do enorme contingente de evangélicos neopentecostais submetidos a seitas religiosas cujos líderes vão de charlatães a chefes de organizações criminosas.

Bem orientado, em termos de comunicação digital e ações no mundo real, pela Internacional de extrema direita, da qual Steve Bannon é o mentor, e contando com condescendência da imprensa neoliberal, essa facção política que incluía ainda empresários do varejo, do garimpo ilegal e do agronegócio interessados no roubo das terras indígenas, decidiu que tomaria o poder central a qualquer custo depois da intervenção no Rio de Janeiro. A prova de que há uma cooperação internacional entre os extremistas de direita no mundo é o fato divulgado pelo The New York Times de que Bolsonaro escondeu-se dois dias na embaixada da Hungria enquanto a Polícia Federal expedia prisões dos envolvidos na tentativa de golpe militar de 8 de Janeiro de 2023.

O interventor general Braga Netto assinou a nomeação do delegado Rivaldo Barbosa como chefe da Polícia mesmo sabendo que ela era contraindicada pela área de inteligência do órgão. Por qual motivo? Esta é uma das novas perguntas que emergem no espaço público!

Segurando o fio da justiça para que não nos percamos no labirinto desse crime político, resumo nosso percurso até aqui:

O presidente traidor Michel Temer nomeia o general Braga Netto interventor no Rio de Janeiro por sugestão do comandante do Exército, que esteve ao seu lado no golpe contra Dilma Rousseff em 2016. Braga Netto assina a nomeação do ex-militar e delegado Rivaldo Barbosa como Chefe de Polícia Civil daquele estado. Barbosa não só planeja o atentado contra Marielle Franco a pedido dos Brazão - aliados de Jair Bolsonaro, candidato dos militares golpistas às eleições de 2018 em sua chapa “puro sangue” e fascista popular graças a um ecossistema digital de desinformação e assédio - mas é nomeado ao cargo para atrapalhar as investigações sobre o assassinato encomendado. Os Brazão fazem campanha para Bolsonaro e vice-versa. Bolsonaro escolhe o general Braga Netto como seu ministro chefe da Casa Civil e anos depois o nomeia como ministro da Defesa.

Se dependesse da imprensa neoliberal, esse crime nunca seria solucionado. Se alguma justiça começa a ser feita, é por causa de pessoas que combatem a desinformação, a sabujice e a covardia na política e no jornalismo.

A extrema direita foi diretamente beneficiada eleitoralmente com a execução de Marielle Franco na medida em que a chapa “puro sangue” venceu também graças ao medo que essa violência bruta e planejada gerou!

Logo, não dá para se contentar com o único motivo para o assassinato apresentado domingo pela Polícia Federal. Há que se ir mais fundo no labirinto para encontrar o Minotauro. E dar cabo dele.

À época do atentado, como deputado federal membro da Comissão Parlamentar Externa da Câmara Federal que acompanhava as investigações do mesmo, eu lutei pela federalização do caso porque não confiava na Polícia Civil do Rio de Janeiro, mas fui derrotado porque houve quem quisesse e fizesse muito para que o caso permanecesse com a Polícia Civil do Rio.

A quinta esquina do labirinto: a difamação política digital

Apenas horas depois dos assassinatos, o ecossistema digital de desinformação (fake news e mentiras) da extrema direita se moveu para desonrar Marielle Franco e inventar falsos motivos para sua execução por meio de uma rajada de metralhadora que destruiu sua face. Deste ecossistema, fazia parte o Movimento Brasil Livre (MBL), organização de extrema direita alinhada com suas congêneres em outros países, notadamente nos Estados Unidos, e que elegeu muitos dos seus membros em 2018 graças às mentiras contra Marielle Franco e à mistificação da intervenção militar no Rio de Janeiro designada pelo golpista Michel Temer e comandada pelo general Braga Netto.

A desembargadora do Rio de Janeiro Marília Castro Neves e o deputado federal Alberto Fraga (PL-DF), eleito recentemente presidente da Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados - duas autoridades públicas - usaram suas mídias sociais para reafirmar e dar credibilidade às mentiras do MBL e dos demais componentes do ecossistema digital de desinformação da extrema direita contra Marielle Franco. Se quisermos a verdade e a justiça completas, esses nexos precisam e devem ser feitos porque a difamação de Marielle Franco logo no rastro do seu assassinato não deve ser tomada como mero acaso. Ela tinha um propósito claro: prejudicar as investigações e ajudar a eleger quem se beneficiou eleitoralmente com o crime.

O fim dessa história está apenas começando. Apenas temos o fio para sair do labirinto. Ainda não sabemos quem é o Minotauro (Quem é a terceira pessoa que estava no carro de onde partiram os disparos contra Marielle Franco e Anderson, e que provavelmente estava ali só para assistir sadicamente o assassinato?). E ele ainda segue vivo e exigindo sacrifícios humanos enquanto todas as perguntas não forem respondidas. Toda força ao fio de justiça que nos permitiu encarar o labirinto.

*Jean Wyllys é jornalista colaborador de oD, escritor, artista visual e doutorando em Ciência Política pela Universidade de Barcelona

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.