OPINIÃO

É hora de mudar

A estratégia vigente não cabe na miséria brasileira. O momento exige uma mudança histórica a que a esquerda brasileira está convocada, e com ela o governo

Lula sobe a rampa do Palácio do Planalto.Créditos: Ricardo Stuckert
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O governo Lula segue, em 2024, realizando o movimento que ensaia desde a posse do presidente, há pouco mais de um ano: o recuo. Na economia, na administração, na relação com os militares e, o que nos interessará mais especificamente aqui, na política. A atitude defensiva do governo em todas essas dimensões de sua atuação espelha a estratégia política escolhida para atravessar o turbilhão da atual conjuntura. Assim como vejo, essa estratégia consiste em isolar a extrema direita aproximando-se da centro direita, fazendo-se ao mesmo tempo alternativa viável para os progressistas e para o centro liberal.

O polo liberal é hegemonizado na política por aqueles que chamaremos de “acumuladores”, os “donos da banca”, que carregam nas mãos a chama dos interesses do mercado. Seu programa máximo é a concentração de renda, a subordinação do Brasil aos interesses imperialistas e a superexploração da classe trabalhadora. Para isso estão dispostos a quase tudo, inclusive romper topicamente com a democracia se necessário, como fizeram em 2016. Disputam hegemonia na sociedade através, entre outros, da grande mídia, e organizam seu poder institucional no chamado “centrão”, misto de gente ávida por dinheiro e representantes orgânicos das classes dominantes.

Percebe-se, portanto, que os liberais, em parte aderentes à “frente democrática”, não são tão democráticos assim, seja no próprio sentido liberal da democracia (a preservação das instituições), seja no sentido substancial do termo (a busca pela igualdade). No plano tático esse é um dado que não pode ser esquecido, mas frequentemente é.

As contradições entre esse centro liberal e a extrema direita os afastaram durante a pandemia. No entanto, o programa concentrador dos acumuladores é aceito pelos extremistas. O problema na relação entre eles é que o nível de radicalização da extrema direita gera tensão nas condições sociais para uma acumulação sustentada no médio prazo. Algo, no entanto, resolvível.  Ambos procuram construir hegemonia na sociedade (um com o etos do capital e o outro o etos moralista conservador), em busca de um projeto de poder em sentido amplo, para além das eleições. No caso da extrema direita, com um tempero ausente no centro: a mobilização popular.

Do lado de cá, o chamado polo progressista, ou, para melhor dar nome às coisas, o lulismo, caracteriza-se por aceitar o programa liberal impondo-lhe limites e estabelecendo ganhos aos trabalhadores. Do ponto de vista político, diferente dos outros dois campos, não persegue a construção de hegemonia e maiorias sociais que ultrapassem os momentos eleitorais, permanecendo com débil atuação no campo do “político”. Com o que o lulismo compensa a falta de mobilização? Desde que surgiu faz isso obtendo sucesso na área econômica, gerando satisfação popular via aumento do consumo de bens e do emprego. Isso era o suficiente para vitória no terreno que interessa ao lulismo: as eleições.

Outrora o boom econômico e a ausência de um campo oposto capaz de mobilizar as massas  tornavam presa fácil o único competidor eleitoral do lulismo, o centro acumulador. Ocorre que agora tudo mudou. Na valsa de aproximação tática com o centro, que marca o lulismo, a vantagem agora é deles, já que a economia não bomba e há um forte polo antilulista radical. O que faz o lulismo frente a isso? A estratégia em curso: derrotar antes a extrema direita, isolando-a, fazendo-a definhar, trazendo para si o centro, o que inclui assumir seu programa, com nuances. Uma vez esvaziada a força do ultraconservadorismo o leão do lulismo voltaria a andar solto pela pradaria. Não é isso o que está acontecendo. A realidade, a seguir como está, mostra os extremistas ainda fortes e o centro valendo-se disso para aumentar a pressão sobre o governo.  

Aqui chegamos ao problema. Lula III não conseguirá, em quatro anos, reproduzir o nível de satisfação popular que conseguiu Lula I, muito menos aquele do segundo governo do presidente. Poderia conseguir se tivesse escolhido, na área econômica, turbinar seu programa com investimento publico e mudanças estruturais mais incisivas, já de partida. No entanto, firme na estratégia que ora explicamos e repetindo o receituário antigo, optou por primeiro obter a confiança dos acumuladores e calmaria no país, acreditando que assim, em seguida, a economia voltaria a ser terreno fértil. Parece querer reeditar o caminho e a cadencia que fez entre Lula I e II. Falta combinar com os russos, e com os chineses, europeus, os estadunidenses e todo o mercado mundial que passa por cenário drasticamente distinto.

As escolhas econômicas feitas podem, no melhor dos cenários, trazer uma resposta positiva em ritmo mais lento do que exige o processo político atual. E no pior, não trazer sequer essa resposta. Se isso for verdade, haverá um flanco absolutamente desprotegido no campo lulista: a política. Se no tempo das vacas gordas ela poderia ser sublimada pela aparente satisfação popular, o que fazer em tempos de vacas magras, tendo como adversários dois campos organizados? A resposta tem sido aprofundar as negociações no congresso até a economia ir reagindo. Um erro. E por que? Justo porque há um claríssimo movimento tático das classes dominantes desde o golpe de 2016, que consiste em esvaziar o poder da presidência, instituição da república historicamente mais vinculada à vontade popular, transferindo-o para os corredores do congresso, onde os acumuladores deitam e rolam.    

O que assistimos é a extrema direita ocupando as ruas, a direita acuando o governo na mídia e no congresso, ambas disputando a consciência popular, e o governo limitando-se a reeditar algumas políticas públicas de retorno social não imediato e aceitando fazer do parlamento seu único campo de batalha. Receita conhecida em outros países para aprofundar a crise, promover descontentamento popular e abrir caminho à volta da direita, seja a radical ou não.

É urgente uma mudança. Essa reinvenção deve incorporar uma “novidade” à estratégia: a mobilização popular. Inicialmente da própria base social de apoio, que pode dispersar-se. Mas depois deve aprofundar-se. Para isso precisa superar duas visões arraigadas no amago do lulismo. A primeira e mais urgente é a visão que orienta o programa econômico em direção aos acumuladores, buscando gradualmente ganhos marginais aos de baixo. Só é possível mobilizar as massas entregando a elas os justíssimos ganhos reais que merecem e precisam desesperadamente. Outra é a recuperação da dimensão moral da política que mobiliza a base social do lulismo. É preciso reafirmar os valores que põem a dignidade humana acima dos interesses econômicos e políticos dos acumuladores.

Por ora, enquanto a direita moraliza a política com seus valores nós pedimos à nossa base paciência. Mais que isso: a confundimos com um plano econômico liberal, com projetos que liberam jornada de trabalho de 12h diárias e enfraquecimento da memória da luta do povo brasileiro contra a ditadura.  O momento de maior coesão de nossa base foi justamente aquele em que Lula reafirmou princípios: o caso da Palestina.

(Registre-se que também é preciso articular novas formas de participação popular, para além daquelas construídas pela esquerda até aqui (Conselhos, Conferências, etc). Essas mobilizam apenas movimentos ligados ao próprio campo e não têm sido mais capazes de responder sequer a eles, por problemas estruturais da democracia liberal que não discutiremos aqui.)  

 Além disso, precisamos parar de deslegitimar a raiva popular e de acusar o “pobre de direita”. O povo está sim odiando as condições de vida a que é submetido. Seguir amoroso e esperançoso acordando as 5h da manhã, pegando dois ônibus lotados até o trabalho, ralando 8 a 10h em troca de um salário que não dá para nada em centros urbanos insalubres seria atestado de loucura. Isso para falar apenas dos que vivem “bem”, tem emprego e renda. Esse descontentamento, essa raiva, deveria ser convertida em motor para a mobilização em torno de um programa de libertação. Na falta disso a extrema direita oferece o seu, que consiste no triunfo moral sobre a realidade cruel, seja pela religião, seja pelos méritos individuais. A história mostra que o contrário da raiva popular não é o amor, é a mudança social, ou, no mínimo, um horizonte de mudanças.  

Para isso a esquerda brasileira e o governo, com toda sua complexidade, têm à disposição, ainda assim, um instrumento raríssimo, um líder popular histórico de grande estatura que fala diretamente com as massas: Lula. Tem outro instrumento importantíssimo nas mãos: a presidência da república. Tem mais outro: um conjunto de movimentos, partidos e sindicatos que, se já não são decisivos, ao menos mantem força de mobilização considerável.

A estratégia vigente não cabe na miséria brasileira. O momento exige uma mudança histórica a que a esquerda brasileira está convocada, e com ela o governo. E uma mudança desse nível não vem do parlamento, jamais, muito menos surge em jantares reservados. Ela vem das ruas, com um programa efetivo e com as massas populares mobilizadas. A extrema direita não está morta e a direita espera o momento para dar o bote. Ambas falam com a massa e fortalecem suas posições. E nós?

Ser pragmático agora é ser ideológico.

É hora de mudar, para seguirmos sendo os mesmos na luta por um Brasil para o povo brasileiro.