Dias atrás, um primo, adepto das ideias terraplanistas, me enviou um vídeo, de um canal no Youtube intitulado “Inteligentista”, em que eram denunciadas as “fraudes” da Teoria da Evolução elaborada por Charles Darwin.
Ao verificar o conteúdo do referido canal, encontrei outros vídeos que questionam a Relatividade, o Big Bang e a Lei da Gravidade, colocam em xeque a eficácia de vacinas, mencionam a existência do marxismo cultural e associam Lula e Dilma Rousseff ao comunismo. Como não poderia deixar de ser, a cereja do bolo também estava lá: a defesa da Terra Plana. Por outro lado, passagens bíblicas como a Arca de Noé e a Torre de Babel são apresentadas como “fatos reais”. Em resumo, se trata de um grande grupo de WhatsApp de extrema direita em forma de canal no Youtube (que poderia se chamar “Ignorantia” ao invés de “Inteligentista”).
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Evidentemente, todo cidadão tem o direito de questionar a ciência, ou qualquer outra forma de conhecimento, desde que isso seja feito com argumentos plausíveis e fatos; não com ideias tiradas sabe-se lá de onde.
Assim, respondi a meu primo que não havia como contra-argumentar tais delírios e que este tipo de “discussão” é feita somente na internet, não aparece na imprensa minimamente séria, na esquerda, tampouco na universidade (apesar de todos os seus pontos negativos, como bem sabemos). Prontamente, ele alegou que estas questões não são debatidas nesses espaços, pois todos estão “domesticados pelo sistema”.
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Logo, o que poderia se passar por mais uma conversa que não levaria a lugar nenhum, me trouxe a seguinte questão: a crítica ao “sistema”, historicamente ligada à esquerda, agora está praticamente monopolizada pela extrema direita. Boa parte dos setores progressistas está completamente adaptada ao status quo, ou seja, de alguma forma está “domesticada pelo sistema” (no caso, o sistema capitalista); enquanto a extrema direita tem sido a voz mais forte contra o “sistema” (embora, como se sabe, em sua maioria, a extrema direita é apenas uma variante “radical” e “selvagem” da direita tradicional).
Ironicamente, a ideia de “Teoria da Conspiração” (bastante utilizada atualmente para se referir aos devaneios da extrema direita) surgiu para deslegitimar as falas da esquerda que denunciavam as ações estadunidenses em outros países, como apoio a golpes de Estados, assassinatos de lideranças políticas e guerras econômicas.
Não faltam exemplos sobre como a extrema direita tem preenchido a lacuna de contestação ao sistema deixada pela esquerda.
Sobretudo após a pandemia da Covid-19, o campo científico, que era constantemente questionado pela esquerda (a partir dos conceitos de “paradigma” e “híbridos”, propostos respectivamente por Thomas Kuhn e Bruno Latour) hoje praticamente não recebe críticas.
Claro que não vamos negar a importância da ciência para vencermos o novo coronavírus, mas isso não significa, como tem feito parcela considerável da esquerda, acreditar que essa instância é infalível ou negar que a indústria farmacêutica, em muitas oportunidades, recorra a procedimentos escusos em busca de lucros.
Com a ausência crítica da esquerda, a extrema direita tem um espaço aberto para questionar a ciência, a partir de seus devaneios negacionistas e antivacina.
Outra temática cara à esquerda, que não observamos com frequência no presente contexto, são as contestações ao processo de globalização – caracterizado pela intensa integração das economias nacionais em um mercado global (ampliando assim a exploração dos países pobres). Aproveitando esse vácuo, a extrema direita tem expandido seu conceito de “globalismo” – suposto plano de dominação do planeta por uma “elite comunista”.
Qualquer pessoa em sã consciência sabe que não existe tal plano. Porém, seria equivocado não pensar que poderosas corporações e grandes investidores do mercado financeiro não almejam exercer uma hegemonia em âmbito global. Não obstante, conforme bem apontou o presidente Lula, em discurso na 37ª Cúpula da União Africana: “a alternativa à globalização neoliberal não virá da direita racista e xenófoba”.
Enquanto em um passado não tão remoto, uma das palavras de ordem da esquerda era “Fora Rede Globo, o povo não é bobo”, hoje muitos progressistas acreditam (ingenuamente ou não) que a empresa da família Marinho defende as minorias (em telenovelas ou no BBB) e é aliada na luta contra o bolsonarismo (vide representações negativas do “mito” e seus seguidores nos noticiários). Além disso, muitos sonham em aparecer em programas dos canais do Grupo Globo. Nessa lógica, um crítico da Vênus Platinada corre o risco de ser confundido com os adeptos da hashtag “Globo Lixo”.
Da mesma forma, para muitos que se consideram à esquerda, o ápice da carreira intelectual é ser colunista da direitista Folha de São Paulo (outro veículo de imprensa atacado pelo bolsonarismo, com a alcunha “Foice de São Paulo”).
Com a esquerda “domesticada pelo sistema”, a extrema direita capciosamente também tem se apropriado das críticas ao Supremo Tribunal Federal, das pautas pela liberdade de expressão e do questionamento às políticas ambientais impostas pelos países centrais do capitalismo aos países periféricos. Lembrando Žižek, boa parte da esquerda comprou o discurso sobre ser mais fácil pensar no fim do mundo do que no fim do capitalismo. Até as mobilizações de rua, ultimamente, têm sido mais frequentes na extrema direita do que na esquerda.
Em suma, se a esquerda não deixar de lado sua capitulação e recuperar a hegemonia da crítica, todos os indivíduos que questionarem o status quo serão tachados como conspiracionistas, lunáticos, bolsonaristas e extremistas ou terão sua sanidade mental colocada em xeque. Os “donos do poder” e o “sistema” agradecem.