Em sua vasta e contundente obra, o sociólogo Jessé Souza explica que a origem do Brasil não está numa suposta herança portuguesa, responsável pelo surgimento de um povo corrupto e personalista, mas na escravidão, e todo tipo de relação social que esta prática gerou.
Nesse sentido, os descendentes dos ex-escravizados constituem um grupo de pessoas que, provocativamente, Jessé classifica como “ralé”, cuja principal característica é o abandono social e político e a ausência de direitos básicos fundamentais. Algo semelhante ao que eram os dalit, também conhecidos como párias, na antiga sociedade de castas hindu.
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Evidentemente, na maioria das ocasiões, esse desprezo (e em alguns casos, ódio mesmo) em relação à ralé não é explicitado no cotidiano, se manifestando de maneira lateral, por exemplo, no chamado “antipetismo”. A partir desse “álibi”, nos últimos anos, o indivíduo de classe média pôde ir tranquilamente às ruas para se mostrar indignado com a “corrupção do PT” (quando, em realidade, este ódio ao partido não era por possíveis práticas ilícitas, mas pelo fato de os governos Lula e Dilma terem sido os únicos na história do país a olharem para a ralé).
No entanto, lembrando Brecht, com a “cadela do fascismo no cio”, muita gente já não se preocupa em esconder seus preconceitos. Isso nos ajuda a explicar os recentes ataques ao padre Júlio Lancellotti por parte da extrema direita.
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Como sabemos, o sacerdote tem um histórico de trabalho junto à população pobre, sobretudo em relação às pessoas em situação de rua (portanto, o grupo a que Jessé Souza se refere como “ralé”). Para o padre, nós temos que sair da hostilidade para a hospitalidade [sobre ajuda às pessoas em situação de rua]. É um processo educativo, político, econômico e social”. Trata-se, assim, de seguir o exemplo do principal nome da religião cristã: Jesus.
Mas, para a extrema direita, é inconcebível um religioso que siga o exemplo de Jesus. Seu modelo ideal de líder espiritual é aquele vendilhão do templo, que corrompe seus fiéis, se locupleta a partir da fé alheia e, principalmente, “faz arminha com a mão”.
Desse modo, vale tudo para atacar o padre que defende a ralé: pedido de abertura de CPI, fake news, ameaças via redes sociais, editoriais raivosos na imprensa conservadora, vídeos falsos e tudo mais que a imaginação sórdida da extrema direita permitir.
Em suma, a “indignação” da extrema direita com o padre Júlio Lancellotti não é por causa de infiltração comunista na Igreja Católica, pregação política radical e agressiva, desvio de verbas públicas por ONGs ou outras supostas atividades ilícitas e reprováveis do religioso. É simplesmente a reatualização da velha aporofobia brasileira. A diferença é que a “direita tradicional”, pretensamente civilizada, tenta racionalizar seu ódio ao pobre com argumentos moralistas. Já a “extrema direita”, por sua vez, sem qualquer constrangimento ou pudor, reverbera esse ódio em estado bruto.
Se esse pessoal faz essas covardes acusações e ataques a Júlio Lancellotti, imagine o que fariam com um conhecido judeu que, há dois milênios, dizia frases como “Vende os teus bens, dá o dinheiro aos pobres”, “Felizes de vocês, os pobres, porque o Reino de Deus lhes pertence” e “É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus”.
Não é difícil saber o que aconteceria!
*Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em Geografia pela Unicamp.