Eram 19h13 quando Ricardo Nunes (MDB) subiu esfuziante ao palco montado no Clube Banespa, em Santo Amaro, e se movia como se estivesse sendo eletrocutado. Felicidade pura vazava pelos poros do prefeito reeleito de São Paulo, que, em meio a tantos apoiadores, sequer sabia quem cumprimentar primeiro.
No entanto, ele sabia quem seria a figura mais importante a ser cumprimentada no evento e a quem deveria agradecer antes de tudo: Tarcísio de Freitas (Republicanos), o governador paulista, grande fiador de sua candidatura e quem segurou sua mão quando praticamente todo o campo bolsonarista o rifou e correu para os braços do ex-coach Pablo Marçal (PRTB), que ficou pelo caminho no primeiro turno.
“Eu agradeço muito a Deus, agradeço à minha família. Queria deixar agradecimento especial a minha esposa Regina, que esteve sempre ao meu lado, em todos os momentos da minha vida e sofreu enormes maldades nessa campanha. E ao líder maior, sem o qual não teríamos de ter tido essa vitória, o governador Tarcísio de Freitas”, gritou Nunes, emocionado e sob aplausos de seus correligionários.
A grande verdade é que essa frase foi o fato mais importante da noite deste domingo (27) após o anúncio da vitória do político do MDB. Tarcísio estava ali, já havia sido abraçado, e sorria alegremente ao ouvir o elogio rasgado. Não é preciso explicar muita coisa para perceber que tal alcunha, de “líder maior”, para toda a extrema direita brasileira seria cabível a apenas uma só pessoa: Jair Bolsonaro (PL).
A declaração de Nunes também não foi fortuita, tampouco um deslize. A intenção era mesmo atacar Bolsonaro, que o humilhou diversas vezes durante a corrida eleitoral, primeiro negando apoio público, depois negando-se a aparecer ao seu lado quando foi obrigado a fazer isso por acordos partidários, e por fim ao cumprimentá-lo sem ao menos olhar na cara do prefeito a poucos dias da volta final da disputa. O ex-presidente fazia questão de dizer que seu candidato era o vice da chapa de Nunes, indicado por ele, um coronel da reserva da PM de São Paulo que representa o que há de mais reacionário e truculento.
É necessário contextualizar que Bolsonaro foi brutalmente derrotado nesta eleição municipal. Todos os nomes ligados de forma mais intestinal e umbilical ao bolsonarismo bufo foram derrotados. Com exceção de Abilio Brunini, em Cuiabá, a claque da gritaria saiu derrotada das urnas, como nos casos de Alexandre Ramagem, no Rio, Gilson Machado, no Recife, Bruno Engler, em Belo Horizonte, Fred Rodrigues, em Goiânia, André Fernandes, em Fortaleza, Cristina Graeml, em Curitiba, Eder Mauro, em Belém, Janad Valcari, em Palmas, Marcelo Queiroga, em João Pessoa, Carlos Jordy, em Niterói, Rosana Valle, em Santos, e Antônio Parimoschi, em Jundiaí.
É inequívoco que o Brasil deu uma guinada ultraconservadora, e que a direita, e talvez até a extrema direita, tenha crescido. Mas é inequívoca também a perda de força do ex-presidente. Mesmo em redutos eleitorais reacionários, os nomes impostos por ele acabaram saindo derrotados. Outros atores igualmente conservadores e sem a suas bênçãos levaram a melhor na queda de braço com o até então todo-poderoso totem extremista.
Diante disso, é preciso lembrar também que Bolsonaro está inelegível e que, até então, Tarcísio seria o nome mais forte, ainda que sem admissão oficial e pública, para a disputa da Presidência da República em 2026. O mantra no bolsonarismo é de que Bolsonaro é o candidato, mesmo sem poder ser. Numa eventualidade, que a bem da verdade é uma certeza, de que o ex-presidente não poderá se candidatar, aí sim surgiria Tarcísio como uma força política, uma vez que é evidente e comprovado que o governador vem apresentando bons índices de aprovação entre a população em São Paulo.
O destaque de Tarcísio entre as hostes da extrema direita e a ascensão experimentada por ele ao se travestir de “moderado”, em que pese suas frases de apoio à violência policial e as abobrinhas ultraconservadoras “nos costumes”, já vinha incomodando Bolsonaro, que procurava disfarçar. O antigo ocupante do Palácio do Planalto, um dos seres mais vaidosos já paridos sobre a face da terra, não suporte que lhe faça o mínimo de sombra. O próprio governador sempre procurou não colocar lenha nessa fogueira, conhecendo o "chefe", e vivia repetindo como um soldadinho de chumbo que o “mito” era seu líder e mentor.
Agora, a frase de Nunes correspondida com largos sorrisos e abraços calorosos parece ter o poder de dinamitar de vez a relação entre Tarcísio e Bolsonaro. O chefe do Executivo paulista perdeu a vergonha de se mostrar vaidoso e gostou de provar o protagonismo do poder com a vitória eleitoral de seu protegido na maior cidade do país. Ouviu alegremente Nunes descer o sarrafo nos “extremismos” (leia-se bolsonarismo-raiz), e assumiu uma postura de piscar para os acenos por “moderação”.
Conhecendo Bolsonaro como todos bem conhecem, a noite de brilho e fogos de artifício conquistada às custas de sua fragorosa derrota pode deixar o “capitão” num oceano de ódio com o até então pupilo e escolhido para assumir seu legado no caso de a inelegibilidade permanecer. Terá ele estômago para passar por cima disso e seguir como fiador de Tarcísio no bolsonarismo, ou o fígado falará mais alto? Aliás, a pergunta deveria ser outra após essa noite de domingo: Bolsonaro ainda está em condições de ser fiador de alguma coisa no campo ultraconservador/reacionário, ou os novos nomes surgidos nos últimos tempos já tiraram seu protagonismo?
Ainda é cedo para saber, mas a coisa entre os dois nunca mais será a mesma. Isso é um fato.