Recentemente, o ministro da Defesa, José Múcio, fez uma declaração que trouxe à tona a complexa relação entre governo, Forças Armadas e povos indígenas no Brasil. Ao falar sobre a importação de potássio do Canadá, Múcio afirmou: “Temos a segunda maior reserva, mas como está embaixo da terra dos índios, nós não podemos explorar.” Essa fala, que aparentemente reflete uma visão técnica sobre os desafios econômicos do Brasil, carrega um peso histórico e político muito maior quando colocada no contexto do pensamento militar sobre as terras indígenas.
Essa posição encontra eco nas recentes discussões entre representantes das Forças Armadas e o governo sobre a exploração das terras demarcadas. Documentos, discursos e, recentemente, o livro A Farsa Yanomami — uma publicação do Exército que nega a gravidade da crise humanitária envolvendo esse povo — reforçam a visão de que as terras indígenas estão sendo protegidas em excesso, e que isso estaria prejudicando o desenvolvimento nacional.
A crítica dos povos indígenas e a resposta das Forças Armadas
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) reagiu prontamente às declarações do ministro Múcio e ao que percebem como uma crescente tentativa de deslegitimação de seus direitos. Em uma nota oficial, a organização denunciou a retórica que associa a proteção das terras indígenas ao atraso econômico, lembrando que tais territórios são protegidos pela Constituição Federal e por tratados internacionais de direitos humanos.
Além disso, a APIB tem denunciado uma narrativa antiga, ainda baseada nos argumentos dos militares da ditadura, que cria uma falsa dicotomia entre desenvolvimento e preservação de direitos indígenas. De acordo com essa visão, para o Brasil se desenvolver plenamente, seria necessário abrir mão da proteção às terras indígenas e permitir a exploração econômica dessas áreas. Essa ideia, no entanto, é amplamente considerada uma falácia, uma vez que o desenvolvimento econômico do Brasil não depende das terras indígenas, mas de uma gestão eficiente dos recursos e de políticas públicas que respeitem os direitos de todos os cidadãos, inclusive os povos originários.
A falácia do desenvolvimento às custas dos direitos indígenas
Desde o regime militar, as Forças Armadas têm sustentado a ideia de que as terras indígenas constituem um obstáculo ao progresso econômico. Durante a ditadura, a Doutrina de Segurança Nacional posicionava essas terras como vazios de poder, suscetíveis à ocupação estrangeira, e como impedimentos ao avanço de projetos estratégicos. Essa narrativa persiste até hoje, mesmo com evidências de que o Brasil tem outras áreas e recursos disponíveis que podem ser explorados sem violar os direitos constitucionais dos povos indígenas.
O pensamento militar que associa as terras indígenas ao subdesenvolvimento do Brasil foi reciclado e modernizado ao longo dos anos. No governo de Jair Bolsonaro, essa visão foi amplificada, e figuras como o general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército, tornaram-se porta-vozes dessa retórica. Villas Bôas, inclusive, culpou as próprias comunidades indígenas pela crise humanitária vivida pelos Yanomamis, ignorando o impacto do garimpo ilegal e da exploração desenfreada nas suas terras.
A continuidade do pensamento militar no governo Lula
Embora o governo Lula tenha prometido um compromisso maior com as pautas de direitos humanos e ambientais, as recentes declarações de Múcio levantam questionamentos sobre até que ponto o pensamento militar continuará a influenciar as políticas públicas. Sua fala sobre o potássio é um reflexo dessa ideologia, que tenta criar uma falsa necessidade de flexibilizar os direitos indígenas para alcançar o desenvolvimento econômico.
No entanto, especialistas em desenvolvimento sustentável e economistas têm refutado essa visão. O Brasil, com seu vasto território e abundantes recursos naturais fora das terras indígenas, não depende dessas áreas para crescer economicamente. A insistência em vincular o progresso à exploração das terras dos povos originários é vista por muitos como uma estratégia de setores interessados em garantir privilégios a grandes corporações e garimpeiros ilegais, em detrimento dos direitos humanos e da preservação ambiental.
A tensão entre desenvolvimento e preservação: uma falsa escolha
A fala de Múcio reforça essa dicotomia falsa entre desenvolvimento e preservação, como se o Brasil estivesse diante de uma escolha binária: explorar as terras indígenas ou estagnar economicamente. Na realidade, o país tem plenas condições de desenvolver-se economicamente sem violar os direitos constitucionais dos povos indígenas e sem abrir mão da preservação ambiental. Políticas públicas eficientes, investimentos em infraestrutura sustentável e respeito aos direitos humanos são os caminhos para o desenvolvimento de longo prazo.
A APIB, assim como outras organizações de defesa dos direitos indígenas, tem mantido sua postura firme contra qualquer tentativa de flexibilização das leis que protegem essas terras. A organização já sinalizou que levará o caso ao Supremo Tribunal Federal (STF), caso haja qualquer tentativa de abrir as terras indígenas para exploração mineral.
A fala do ministro José Múcio sobre a exploração de potássio em terras indígenas e a resposta crítica da APIB revelam um cenário de confronto entre dois modelos de desenvolvimento para o Brasil. De um lado, a visão militar e governamental, que vê nas terras indígenas um recurso inexplorado, e de outro, as organizações indígenas que lutam pela preservação de seus territórios e culturas. Mais importante, a narrativa de que o Brasil precisa sacrificar os direitos indígenas para crescer economicamente não se sustenta — é uma falácia que remonta aos tempos da ditadura e que continua sendo usada como justificativa para a exploração de terras protegidas.