Desde que li a primeira notícia sobre o funk tocado e dançado para crianças na educação infantil nas escolas do Rio de Janeiro, que vi a indignação e reação do prefeito Eduardo Paes, a criminalização de professoras e diretoras que dançaram animadamente com suas crianças ao som do funk e os ataques aos dançarinos e à coreógrafa Alice Ripoll nas redes, fiquei muito incomodada com como tudo foi tratado.
A primeira coisa que me incomodou: o estigma que o funk carrega desde o seu nascimento.
Te podría interesar
Não preciso voltar às tardes de domingo do Faustão ou do Gugu e sua banheira para ver Carla Perez agachar-se sobre uma garrafa e todas as crianças daquela geração reproduzindo o gesto e cantando: “Todo mundo sambando na boquinha da garrafa/ No samba ela me disse que rala/ No samba eu já vi ela quebrar/No samba ela gosta do rala-rala/ Me trocou pela garrafa e não para de ralar/Me trocou pela garrafa (vá, vá, vá) não aguentou e foi ralar/ Vá descendo na boquinha da garrafa/É na boca da garrafa/Vai quebrando na boquinha da garrafa (assim)/É na boca da garrafa/Desce mais, desce mais um pouquinho/Desce mais, desce devagarinho...”
Desde quando nossas crianças na mais tenra idade aprendem no rádio e na TV a sexualizar os corpos femininos como objetos?
A mídia não interpela o sertanejo sexista, porque ele é um negócio muito lucrativo
Eu morei muito tempo na periferia de São Paulo e eu não ouço funk por vontade própria, pelo simples fato de também não ouvir sertanejo de massa: não gosto das letras, do ritmo e, em ambos os estilos, há muitas músicas com componentes sexistas, machistas e muitas vezes misóginos.
Mas cansei de ouvir meus vizinhos jovens com suas crianças muito pequenas cantando e dançando funks de extrema sexualização. As crianças da Cidade de Deus dançaram animadamente o Cavalo no Cio porque ouvem no cotidiano em suas casas, nas casas dos vizinhos, nos celulares e carros da comunidade. Certamente essas crianças não têm a menor ideia do que significam os termos “cio” e “tarado”. Seus pequenos corpos aprendendo lateralidade, equilíbrio respondem ao ritmo da música e à liberdade e ao prazer de dançar.
Mas voltemos ao sertanejo. O sertanejo está no topo dos streamings e rádios em todo o país. Toca tanto que se massificou nacionalmente e hoje invade as festas juninas do Nordeste, por exemplo. Em um estudo recente da Universidade de Brasília[1] sobre gênero e o estilo musical em questão, vemos o impressionante dado: 73 das 100 músicas mais tocadas em 2018 nas rádios do Brasil são do gênero sertanejo (Connectmix, 2019).
Quantas vezes você ouviu alguém cantarolando “Engole o choro, embora eu não vou/ Agora vê se aprende a dar valor/ Mata a minha sede de fazer amor”. No YouTube há sete anos, o hit de Felipe Araújo tem quase 306 milhões de visualizações. Mariah Sá Barreto Gama e Valeska Zanello, autoras que analisaram as paradas de sucesso do estilo sertanejo, mostram, entre outros aspectos, a romantização da violência psicológica contra as mulheres em muitas dessas letras. Nos versos acima a situação de sexo forçado durante o casamento: engole o choro, aprende e mata meu desejo de fazer sexo.
E o que dizer de uma representação do patriarcado onde o macho decide pela mulher, ordenando o que ela tem de fazer? Em Vidinha de balada, música de Henrique e Juliano, que desde 2017 acumula 522 milhões de visualizações, vemos a seguinte representação: “Vai namorar comigo sim/ Vai por mim igual nós dois não tem/Se reclamar 'cê vai casar também, com comunhão de bens/Seu coração é meu e o meu é seu também”.
É uma ameaça explícita travestida de amor romântico.
Mas não vemos toda a mídia fazendo análise de discurso de músicas sertanejas ou prefeitos deixando de convidar os cantores sertanejos para cantar em eventos públicos, familiares.
“É som de preto, de favelado”
O fato de não gostar de funk não me impediu de acompanhar a criminalização de um símbolo das periferias do Sudeste brasileiro, assim como sua transformação em uma plataforma de empoderamento das favelas. Quem acompanha Sintonia, a série da Netflix de Konrad Dantas, o KondZilla, sabe do que estou falando.
O funk e também o sertanejo em sua versão feminejo têm modulações não são monolíticos. Há funks feministas, há funks infantis e até evangélicos. O funk é uma plataforma de empoderamento das favelas, de seu reconhecimento e construção de uma identidade positiva. O funk é uma chance para fugir do crime, das drogas, o funk é tocado nas festas da classe média alta, o funk ganhou o mundo nas apresentações da coreógrafa Alice Ripoll, agora tratada como criminosa nas redes. O funk é o lúdico para jovens e adolescentes periféricos como os que foram asfixiados por policiais no massacre de Paraisópolis. Como diz o hino funkeiro de Amilcka e Chocolate: “O nosso som não tem idade/Não tem raça e nem vê cor/Mas a sociedade pra gente não dá valor/Só querem nos criticar pensam que somos animais/Se existia o lado ruim hoje não existe mais”
A reação de Eduardo Paes e o linchamento de diretoras de creches e da coreógrafa
O prefeito Eduardo Paes reagiu fortemente nas redes diante do vídeo do Cavalo no cio tocado nas creches cariocas.
Afastou sumariamente quatro profissionais que dirigiam as unidades Ciep Luiz Carlos Prestes, Ciep Gustavo Capanema, Escola Municipal Marechal Estevão Leite de Carvalho e Escola Municipal Rivadavia Correia.
O Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Estado do Rio de Janeiro acertadamente interpelou a decisão de Paes, pois se o prefeito se diz enganado com a “classificação livre” como responsabilizar os/as diretoras? A contratação do espetáculo dirigido pela coreógrafa Alice Ripoll é feita pela Secretaria da Educação e não pelas escolas. As diretoras por acaso têm a liberdade de dizer não à Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro?
Alice Ripoll é coreógrafa, intérprete e diretora de movimento para teatro e cinema. Ela tem uma longa e bem-sucedida carreira internacional e suas duas companhias já estabeleceram contrato com inúmeras administrações públicas, como o governo de São Paulo. De acordo com os dados do portal do governo do Estado de São Paulo[2] os trabalhos de Alice Rippol já foram apresentados em diversos festivais no Brasil, como o Festival Panorama, Bienal SESC de Dança, Festival Dança Gamboa, Bienal de Dança do Ceará e Trisca Festival; e no exterior: Kampnagel - Internationales Sommerfestival, Zürcher Theater Spektakel, Noorderzon, Rencontres Chorégraphiques de Seine-Saint Denis; Projeto Brasil (em quatro cidades na Alemanha: HAU em Berlim, Hellerau em Dresden, Tanzhaus em Düsseldorf e Mousonturm em Frankfurt), Centre National de la Danse (Paris), Festival de la Cité (Lausanne), Norrlandsoperan (Umeå) e Kunstenfestivaldesarts (Bruxelas).
O funk, o passinho do funk, são centrais nos trabalhos da coreógrafa, que está sendo tratada como trapaceira.
O episódio do Cavalo no Cio poderia gerar um debate salutar sobre o direito de nossas crianças ao acesso à cultura, à dança, à música, à identidade. Que som ouvimos, o que sentimos com ele? O diálogo das escolas com especialistas das universidades, o debate de gênero e como muitas letras de diferentes estilos musicais, programas humorísticos, propaganda de brinquedos e de diferentes produtos reforçam as desigualdades de gênero e papéis sociais cristalizados e naturalizados em nossa cultura fortemente sexista, racista e homofóbica.
Criminalizar mais uma vez o funk, os dançarinos, diretoras, coreógrafa pode ser uma reposta rápida ao moralismo em ano pré-eleitoral, mas não contribuirá em nada para enriquecer e garantir o direito de nossas crianças o acesso à cultura e a reflexão sobre as inúmeras desigualdades no Brasil.
[1] Mariah Sá Barreto Gama e Valeska Zanello."Dispositivo amoroso e tecnologias de gênero: uma investigação sobre a música sertaneja brasileira e seus possíveis impactos na pedagogia afetiva do amar em mulheres
Pesquisa desenvolvida como Pibic/UnB, e premiada com “menção honrosa 2019”. Disponível em: < https://drive.google.com/file/d/1HLcW6NrgrgnmLCdpDteAT-B_z7rldZBO> Acesso: 01/09/2023.
[2] https://spcd.com.br/verbete/alice-ripoll
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.