Santiago, Chile, 11 de setembro de 1973. Os relógios por todo o país marcam precisamente 10h30. São ouvidos os primeiros disparos dos tanques M41 Walker Bulldog, seguidos de forte artilharia do corpo de infantaria do Exército. O alvo era o Palácio de La Moneda, cujas fachadas começam a ser devastadas pelo fogo pesado que o atinge por todos os lados. Uma hora e meia depois, ao meio-dia, a destruição se consuma com o lançamento de pelo menos quatro foguetes contra a sede da Presidência do Chile por caças Hawker Hunter da FACh. Era questão de horas para que a notícia da morte de Salvador Guillermo Allende Gossens, um médico-cirurgião de 65 anos, marxista e eleito democraticamente para a chefia do Estado daquele país sul-americano, corresse o mundo.
O fato é que muita coisa ocorreu antes desses momentos narrados e o fim da democracia no Chile, mas o propósito deste artigo não é trazer pormenorizadamente esses intentos. Sucintamente, pode-se dizer que Allende foi eleito, em 1970, com 36% dos votos, ante 35% do segundo colocado, um “independente” de direita, e ainda 28% da Democracia Cristã, tida como de centro-esquerda, na terceira posição. Na prática, um resultado que mostrava o racha profundo em três bandas na sociedade chilena, embora Allende tenha sido eleito num segundo turno indireto no qual os representantes do Congresso Nacional o “indicaram” à Presidência, com 78% de “sim”, após sua vitória nas urnas.
Pouco tempo antes do fatídico 11 de setembro, para ser mais preciso 74 dias antes, em 29 de junho, insurgentes do Exército já tinham tentado um golpe contra o primeiro presidente marxista eleito no mundo, mas o chamado “Tanquetazo” deu errado e foi sufocado pelo general legalista Carlos Prats, então comandante em chefe da força terrestre chilena. Só que Prats renunciaria poucos dias depois por ter se envolvido numa briga de trânsito na qual sacou sua pistola e disparou contra um carro onde os ocupantes zombaram dele. A condutora era uma mulher, o oficial quase foi linchado no local e viu nos dias seguintes uma forte campanha de seus companheiros de farda e da imprensa para que ele saísse do comando do Exército. E ele acabou por renunciar ao posto.
Quem assume sua posição é o general Augusto Pinochet, àquela altura ingenuamente considerado um legalista fiel a Allende. Faltavam poucos dias para que o mundo conhecesse a verdadeira face de um monstro diabólico que se tornaria o epítome dos ditadores no planeta. Aqueles disparos de tanque, de artilharia e de foguetes por caças-bombardeiros contra o Palácio La Moneda, do início do texto, foram ordens dele. Pinochet assumiu o golpe, a face do golpe e o controle do golpe.
Já se apresentando ao povo chileno como novo “comandante” da nação, o general ditador posa para uma foto que se tornaria icônica. Frente a frente com outros militares da junta golpista, Pinochet aparece de óculos escuros, por baixo dos quais era possível ver seus olhos funestos, com cara de poucos amigos, num clique histórico e imortalizado pelo fotógrafo holandês Chas Gerretsen, que décadas depois o classificou como um “ator” que sabia olhar para o retratista e passar seu recado com a postura corporal. Naqueles dias que se seguiram, o mundo soube também que o Estádio Nacional de Chile, em Santiago, onde a final da Copa do Mundo de 1962 foi realizada e o Brasil sagrou-se bicampeão mundial, tinha virado um campo de concentração da ditadura, com suas arquibancadas e gramado servindo como “setor de triagem” para os “comunistas”, em alguns casos baleados e brutalmente espancados ali mesmo. Os demais eram levados para campos em locais isolados do país ou executados em unidades das Forças Armadas e dos Carabineros, a polícia chilena.
Por trás daquele homem que se mostrava duríssimo e implacável em sua “luta contra o comunismo”, desfilando nas cerimônias castrenses com uma pesada capa e de luvas negras de couro, vestido com o fardamento de gala do Ejército de Chile, inspirado na indumentária militar das tropas prussianas do começo do século XX, existia um canalha covarde. Muitas pessoas de seu convívio próximo contaram, com o passar do tempo, que Pinochet não ficava sozinho em cômodos vastos do La Moneda, tampouco dormia no palácio, pois tinha medo do fantasma de Allende.
No livro “A Sombra do Ditador”, de Heraldo Muñoz, o diplomata que chegou ao posto de chanceler no segundo mandato de Michelle Bachelet traça um Pinochet diabólico, como de fato era, mas não sem realçar sua covardia, algo bastante comum entre os tiranos de plantão, especialmente quando perdem o poder e precisam acertar as contas com a Justiça.
Para ilustrar a covardia do canalha assassino outrora valentão, nada melhor que o episódio de sua detenção em Londres, em outubro de 1998. Pinochet viajara com o neto, em setembro, para realizar uma cirurgia ortopédica na capital do Reino Unido, mas foi surpreendido dias depois de tocar o solo do aeroporto de Heathrow com uma ordem de prisão internacional emitida pelo juiz espanhol Baltasar Garzón, um magistrado que jamais se acovardou ou deu refresco para déspotas, torturadores e verdugos de qualquer nacionalidade. A partir daquele momento, Pinochet se fez de senil e de pobre coitado, circulando todo encolhido numa cadeira de rodas para enfatizar que estava muito doente e que não poderia responder pelo genocídio que promoveu e liderou. Aceitou até ser internado num hospital psiquiátrico. Conseguiu se safar só em março de 2000, quando embarcou num avião militar da FACh de volta para Santiago, chegando “inteirão” e bem-disposto para ser recebido com pompa e fanfarra por seus lambe-botas fardados.
Pinochet ainda viveu uns bons anos. Desceu ao inferno em 10 de dezembro de 2006, justamente no Dia Internacional dos Direitos Humanos, algo que ele violou e massacrou sistematicamente nos 17 anos em que esteve à frente de uma ditadura brutal. O lado bom é que o mundo ficou bem melhor sem o monstro genocida, em que pesem todas as feridas e cicatrizes presentes até hoje no Chile por conta de sua maldade e despotismo.
Ainda que por décadas seu legado de horror tenha sido brindado por poucos chilenos alinhados à sua nefasta e sanguinária visão de mundo, o renascimento da extrema direita em várias partes do globo fez também com que seus admiradores saíssem dos esgotos e passassem a advogar em defesa do tirano. Até no Brasil tal fenômeno vergonhoso foi visto nas inúmeras vezes em que um alucinado e malévolo Jair Bolsonaro exaltou o monstro chileno durante o período em que esteve no Palácio do Planalto.
No Chile sacudido por protestos e convulsão social dos últimos tempos, muito em decorrência das leis e da Constituição de Pinochet, a “recuperação” da imagem do ditador pôde ser sentida na última eleição, quando o ultrarreacionário José Antonio Kast foi ao segundo turno contra Gabriel Boric reivindicando as “glórias” da ditadura. Terminou derrotado, mas conquistou ainda 44% do eleitorado.
Neste 11 de setembro, data que marca os 50 anos do sangrento golpe de Estado que terminou com a morte de Allende e o fim da democracia no Chile, é dia de lembrar também o “triunfo” de um canalha, assim como de sua derrocada e execração. Pinochet está morto e o Chile segue vivo. Que a terra lhe pese.