FRAUDE

Ditador Médici adotou neta como filha e ela recebe R$ 35 mil mensais de pensão

Brasil gasta muito e mal com os militares. Viagra em massa é apenas a ponta do iceberg, diz analista Jeferson Miola

Herança maldita.Créditos: Wikimedia Commons - O ditador Médici garantiu que a neta, que adotou como filha, tivesse pensão vitalícia
Escrito en OPINIÃO el

O Brasil gasta muito -- e mal -- com as Forças Armadas.

O exemplo mais bizarro de mordomia é o do ditador Garrastazu Médici, que governou o Brasil de 1969 a 1974, no auge da ditadura que fechou o Congresso, censurou, matou e desapareceu com adversários políticos.

Pouco antes de morrer, Médici adotou a própria neta, de 21 anos e com pais vivos, como se fosse sua filha. Quando ele e sua viúva morreram, a neta que se tornou filha herdou uma pensão paga até hoje, de R$ 35 mil reais. A Fórum suprimiu o nome da neta deste texto para evitar ataques pessoais nas redes. Ela tem direito vitalício à pensão desde que se mantenha oficialmente solteira, assim como outras 144 mil filhas de militares.

Além disso, há o caso dos militares mortos-vivos, afastados por cometimento de crimes variados. As esposas deles são consideradas "viúvas" e tem direito a receber a pensão para manter a família.

O analista Jeferson Miola decidiu se desbruçar sobre o impacto das Forças Armadas no Orçamento brasileiro desde que elas assumiram protagonismo como não se via desde a ditadura, no governo Bolsonaro.

Para ele, foi um governo militar de tinturas fascistas.

Miola sustenta que os militares consomem R$ 106 bilhões para cuidar de 375 mil soldados da ativa mas, principalmente, para dar conta de pagar pensões aos reservistas, viúvas e filhas solteiras. Enquanto isso, o SUS recebeu R$ 143 bi com a tarefa de cuidar de 200 milhões de brasileiros.

Ainda assim, a taxa de investimento das Forças Armadas em preparo militar é baixíssima, a ponto de Miola prever que o Brasil seria derrotado pela inexistente Marinha boliviana -- é uma licença poética.

Para complicar ainda mais, 75% do investimento é destinado à compra de armas e equipamentos dos Estados Unidos, historicamente a maior ameaça às democracias do Brasil e da América do Sul.

Miola rechaça a reivindicação endossada pelo ministro da Defesa José Múcio, que defende aumentar o Orçamento militar do Brasil para 2% do PIB nos próximos três anos.

O analista propõe uma reforma das Forças Armadas conduzida pelos civis, que as coloque estritamente no seu papel institucional, de segurança contra ameaças externas.

Segundo Miola, falta coragem aos civis para enquadrar os militares, por isso a persistência do dúbio artigo 142 da Constituição, que os fardados interpretam como atribuindo a eles o "poder moderador".

Não houve qualquer crise nacional em 2003, por exemplo, quando através de Emenda sancionada pelo presidente Lula, em primeiro mandato, a regulamentação constitucional de 1988 sobre o sistema financeiro foi extirpada.

Miola nota que, no âmbito castrense, nenhum dos envolvidos na tentativa de dar um golpe em 8 de janeiro recebeu punição administrativa, nem mesmo o tenente coronel Mauro Cid.

Ou seja, os militares vivem em um mundo à parte, cheio de privilégios, como se os paisanos fossem cidadãos de segunda categoria.

Dada à rapidez como tem mudado a conjuntura, Miola acredita que os militares tem um projeto político próprio, que vai renascer em momento de instabilidade econômica e institucional.

Se o Brasil civil anistiá-los, como aconteceu em 1985, mesmo dos crimes contra a Humanidade cometidos durante a pandemia, eles vão voltar.

Só que, na opinião de Miola, as Forças Armadas aprenderam com os erros cometidos ao longo do governo Bolsonaro

O analista faz um alerta sombrio: "Se eles voltarem, voltam para algo muito pior do que a gente viu nesses últimos quatro anos de Bolsonaro".

Mauro Cid não é alvo de investigação interna do Exército. Foto Alan Santos/PR

A seguir, a íntegra da entrevista, editada por questões de entendimento:

Fórum: Em termos gerais, que peso que as Forças Armadas tem no Orçamento do Brasil?

As Forças Armadas são um fardo significativo. Ficam em sexto lugar nos gastos da União. Atrás do Ministério da Fazenda -- que tem aportes substantivos no seu orçamento para o pagamento da dívida e os serviços e encargos da dívida pública.

Atrás disso vem o Ministério da Previdência Social, que com seus 800 bilhões de reais responde a todo o regime geral de Previdência Social. São milhões de trabalhadoras e trabalhadores segurados, pensionistas e aposentados e também benefícios previdenciários.

Depois vem o Ministério da Saúde, o Ministério da Educação (com 120 bilhões de reais), o Ministério do Desenvolvimento Social, com 120 bilhões, que engloba o Bolsa Família, e finalmente o Ministério da Defesa, com 106 bilhões de reais.

Não é um valor desprezível se nós considerarmos que o Sistema Único de Saúde recebeu 143 bilhões de reais em 2022 para atender 200 milhões de brasileiros. Comparativamente, os R$ 106 bilhões da Defesa respondem a cerca de 375 mil soldados das Forças Armadas, da ativa, e também os pensionistas e reservistas.

Então é um orçamento pesadíssimo, e esse orçamento, além de muito pesado, é mal gasto. Cerca de 85% desses 106 bilhões de reais são destinados exclusivamente para pagamento de pessoal. E somente cerca de 5 bilhões de reais são relativos a investimentos.

Quando nós imaginamos que as Forças Armadas tem que estar tecnologicamente preparadas, especialmente no contexto das batalhas que se travam no século XXI, nós imaginaríamos que os investimentos em tecnologia e em armamentos seriam essenciais e, portanto, deveriam consumir um valor muito maior que isso.

No entanto, aqui nós temos uma inversão de valores.

Comparativamente com outras Forças Armadas de outros países, nós vamos ver que há uma distorção enorme.

Precisa ser profundamente reexaminado e reformulado à luz de uma exigência, que é de capacitação das Forças para desempenhar sua função primordial que é cuidar da defesa nacional.

Fórum: Dentro deste gasto altíssimo com o pessoal, algum dado te chama atenção?

Estamos analisando os dados e submetendo a um escrutínio público -- o que pelos órgãos de controle, lamentavelmente, não é feito. É que nos últimos anos as Forças Armadas passaram a ter uma proeminência indevida na cena política.

Estiveram por trás dessa arquitetura de crise desde 2013, com a instabilidade do país, a derrubada da presidenta Dilma -- onde tiveram uma atuação na conspiração junto com o usurpador [Michel] Temer. 

Finalmente, na eleição do Bolsonaro, que fez um governo militar de caráter fascista. Os militares passaram a ocupar o centro da política nacional, do exercício do poder, e isso despertou o interesse para colocar nossa lente sobre isso.

Encontramos não só aquelas compras superfaturadas e indevidas, como, por exemplo, de Viagra em estoques extraordinariamente elevados, leite condensado, uísque 24 anos, cervejas finas e carnes especialíssimas.

Constatamos um verdadeiro escândalo que são esses gastos para pessoal, que mostram uma espécie de sinecura para a chamada família militar. R$ 87 bilhões com pessoal representam quase 85% do gasto total das Forças Armadas. Apenas 33 bilhões são destinados para o pessoal da ativa, o pessoal que está em serviço hoje, e os outros R$ 54 bilhões são destinados ao pagamento dos reservistas.

No caso das Forças Armadas, quem completa o seu ciclo de trabalho -- em condições de idade e tempo diferenciados em relação aos civis -- eles não são aposentados, eles entram para a reserva remunerada. 

Esses que entram na reserva remunerada consomem R$ 29 bilhões por ano do nosso orçamento federal, e pasme aqui, R$ 25 bilhões de reais são gastos com pensionistas.

Temos dois grupos de pensionistas, os cônjuges, sobretudo mulheres, porque são forças preponderantemente masculinas, mas a maior parte são filhas pensionistas que recebem pela vida inteira, vitaliciamente, uma pensão integral das Forças Armadas

E aí a gente numa outra realidade, que é uma realidade espantosa. Se tu fores observar nos pensionistas militares, 64 mil são cônjuges e 144 mil são filhas de militares.

É uma relação invertida em relação ao que tem de civis pensionistas. Com uma diferença, estas filhas civis tem uma pensão temporária, até os 24 anos de idade, no caso dos militares são pensões vitalícias.

E aí eu encerro com algo que é profundamente escandaloso, que é uma maquinação que os militares fizeram, e eu não tô falando aqui de militar mequetrefe, eu tô falando aqui de alto-oficial, inclusive ditadores de turno.

Dou como exemplo o sanguinário ditador Ernesto Garrastazu Médici. Menos de dois anos antes de morrer, em 1984, ele adotou a própria neta, que à época tinha 21 anos de idade e os pais estavam vivos. Esta neta, ele a converteu em sua pensionista. A partir de 2003, quando a viúva do Médici morreu, esta netinha dele passou a ser pensionista vitalícia do Exército Brasileiro. Ela recebe, a valores de hoje -- e eu entrei no portal da Transparência da União -- algo ao redor de 35 mil reais por mês, a título de uma pensão vitalícia do seu avô, que passou a ser o seu pai.

Então veja que é uma situação que, à medida que a gente vai entrando nos dados, nós vamos verificando situações escandalosas, que exigem um maior controle republicano, mas também um olhar civil, porque são os civis com seus impostos que bancam as Forças Armadas.

Fórum: A legislação relativa às filhas mudou, né? Muitas delas não se casam oficialmente para manter a pensão até morrer...

A mudança ocorreu a partir de 2000. Os militares que ou faleceram até 2000, ou ingressaram na carreira até 2000 e aderiram ao sistema de pensão, as suas filhas solteiras terão este direito, que é uma indecência.

Mas os militares ingressos nas forças a partir de 2000, esta situação já não caracteriza mais um direito para as filhas pensionistas, mas sim para as viúvas ou os viúvos.

Há um entendimento, que do meu ponto de vista é um entendimento esdrúxulo, de que é um direito adquirido. Mas não existe em nenhuma carreira civil de serviço público nacional uma situação tão esdrúxula.

De qualquer maneira, como não haverá coragem de parte do poder político, do Poder Executivo, do Poder Legislativo, em revisar e extinguir isso, vai representar um custo de 16 bilhões de reais por ano para pagar essas indecências [até que todas cheguem ao fim da vida].

Elas vão até o último dia das suas vidas desfrutar dessas aposentadorias integrais e vitalícias.

Ailton Barros, expulso do Exército, se tornou advogado e amigo pessoal de Bolsonaro. A esposa dele recebe pensão de R$ 22 mil brutos como se fosse "viúva". Foto redes sociais.

Agora, recentemente, a gente está tomando conhecimento da situação dos militares delinquentes fardados, que são expulsos das Forças e as suas esposas passam a ser consideradas viúvas fictícias e eles são mortos-vivos.

Então tem uma categoria de mortos-vivos, que é o caso, por exemplo, daquele Ailton Barros, que foi expulso do Exército e é amigo do Bolsonaro. Ele está vivo e sua "viúva" recebe pensão.

No caso do Mauro Cid, esse delinquente fardado, tinha que ser expulso imediatamente do Exército sem direito a absolutamente nada, assim como qualquer servidor, quando ele é demitido do serviço público, não carrega nenhuma prerrogativa pra si ou pra sua família em termos de aposentadoria ou de pensão.

Ele conta o tempo de contribuição, conta o tempo de trabalho, mas ele não carrega esse privilégio. Mas no caso do morto-vivo chamado Mauro Cid, se ele for expulso, a sua esposa vai receber algo como 25 mil reais por mês a título de uma viúva falsa, e a renda desse núcleo de família familiar vai estar preservado.

Finalizo dizendo que até dezembro do ano passado, quando eu fiz minha última apuração, a viúva mais antiga desta modalidade indecente das Forças Armadas é do ano de 1930. Ela deve estar hoje com seus 103, 104 anos.

E eu conheço, muito próximo aqui de onde resido, uma senhora que ela é viúva, ela tem cerca de 80 anos e ela é viúva desde 1960. Ela tem uma postura que a gente conhece dessas "pessoas de bem", que exige moralidade, que tem uma crítica contundente aos civis.

Fórum: Quando frequentei ambientes militares, sempre vi os refeitórios que fazem distinção entre o oficialato e o não oficialato. Quando você olha para o orçamento, isso está representado também no Orçamento?

Também, e são diferenças incríveis, impressionantes. Tu tens, digamos assim, o oficialato e o alto-oficialato, e tu tens praças e soldados. Isso [a diferença] se agravou nos últimos anos, durante o período do governo fascista militar, presidido nominalmente só pelo Bolsonaro.

Durante esse último período, e até mesmo um pouco antes, na gestão Temer, o oficialato se autoconcedeu vantagens salariais que aumentaram ainda mais a diferença.

Isso gera hoje um incômodo muito grande das tropas e esta tensão, que tem um certo caradurismo de parte do ministro da Defesa e dos chefes militares, gerou o pedido de aumento de 9%, equivalente ao aumento que foi concedido aos servidores do Serviço Público Federal.

Tem um dado que me parece essencial. Ao mesmo tempo que a gente vê que nas Forças Armadas brasileiras cerca de 85% dos gastos são exclusivamente para pagar pessoal, a experiência de outros países é muito diferente.A Índia destina cerca de 70% dos seus gastos militares para investimentos. A China, mais ou menos nessa proporção; a Rússia, uma cifra, se eu não me equivoco, um pouco superior.

O que que isso quer dizer? Que tu não precisa necessariamente ter um contingente de tropas no padrão que nós temos e especialmente ter um estatuto diferenciado de privilégios inadmissíveis para os militares, seja quando eles vão para a reserva, seja para os seus familiares.

O investimento é a chave para nós pensarmos na qualificação e habilitação das Forças Armadas. Por isso que outras forças nacionais investem mais em tecnologia, armas e equipamentos.

Não é porque tem salários menores, não, é porque existem tropas em contingentes menores e prioridade de qualificação e de equipamento dessas forças.

Com um detalhe adicional: no Brasil nós temos investimentos da ordem de 5 bilhões de reais por ano, cerca de 75% deles não são gastos em tecnologia nacional, não é em estímulo e indução à indústria bélica nacional, é compra dos Estados Unidos. É um regime de escravidão total aos Estados Unidos. Ao passo que na Índia, mais de três quartos do orçamento são para aquisição de equipamentos e armas produzidas domesticamente.

Ou seja, há uma sinergia que o próprio investimento nas Forças Armadas produz industrialização e no aprimoramento tecnológico.

Quando nós falamos aqui em defesa, nós estamos falando em ciberespaço, nós estamos falando em guerra cibernética, nós estamos falando em guerra informacional, em tudo menos fazer transporte de vacinas, pintar meio fio ou atuar em enchentes.

Fórum: Se os Estados Unidos fecharem a torneira, a gente fica sem arma? 

Qual é a potência que pode agredir o nosso país ou o nosso continente? Realisticamente falando, a França não faria isso, a China não faria, a Rússia não tem antecedentes. 

Os Estados Unidos sim --  aliás, todos os golpes de Estado nos últimos 70 anos que aconteceram na América Latina, tiveram a participação direta dos Estados Unidos.

Então é contra esta potência imperial que nós temos que pensar uma qualificação tecnológica para nos defendermos.

Nós temos que nos precaver em relação àquele que representa potencialmente o maior risco de agressão, e de todos os países do mundo que oferecem ao Brasil e ao continente sul-americano o maior potencial de agressão é o vizinho do norte, são os Estados Unidos.

Hoje eu te diria que, se eventualmente a inexistente Marinha boliviana decidisse invadir o Brasil, derrotaria o Brasil. Tal é o nosso despreparo.

O almirante Garnier colocou tanques fumacentos na rua para pressionar o Congresso pelo voto impresso. Não aceitou passar o comando para o indicado por Lula. Foi condecorado pela Embaixada dos Estados Unidos. Foto Instagram

Fórum: Você acha que está inchada essa parte de cima, do alto oficialato, que é a que mais consome dinheiro?

Exatamente, tu tens plena razão. Existe uma hipertrofia de cargos do oficialato. Para ter uma ideia, proporcionalmente as Forças Armadas brasileiras tem mais generais do que o maior Exército do mundo, dos Estados Unidos. São 170 generais, se não estou equivocado, fora o almirantado e os brigadeiros da Aeronáutica.

Com um detalhe: a proporção de generais na reserva em relação a cada um na ativa também é anos luz maior do que a média internacional.

Esse é um aspecto que tem que ser rigorosamente pensado.

O ministro [da Defesa, José] Múcio e os chefes militares reclamam a ampliação dos orçamentos militares no país, eles vem repetindo esse mantra de atingir até 2% do PIB nos próximos três anos, ou seja, passar de 1,3% de comprometimento do PIB para 2%, o que representa um salto de 70%.

Eles propõem isso sem fundamentar, uma vez que nós temos uma necessidade crucial de promover uma imensa reforma militar no nosso país.

Inclusive pensar: nos tempos atuais, será que nós precisamos ter quase 250 mil homens na força terrestre? Nós temos uma costa imensa. Como é que fica num contexto de uma guerra informacional, guerra cibernética?

Como é que fica a proteção por ar e por mar? Então, são demandas apresentadas que não tem nenhuma correspondência com a experiência internacional.

Se tu comparares os gastos militares brasileiros, eles representam um terço do que a Rússia gasta. É importante a gente saber isso, a Rússia gasta cerca de 15 vezes menos que os Estados Unidos, cerca de U$ 65 bilhões, mas esses R$ 106 bilhões do Brasil de 2022, eles representam U$ 22 bilhões.

A Rússia é a segunda maior força armada do mundo, inclusive na área de mísseis hipersônicos ela está anos luz à frente das outras nações e com um orçamento que é apenas três vezes maior que o orçamento brasileiro. Só que tem um plano estratégico, tem uma capacidade bélica diferenciada e muito superior à nossa.

Nós não resistiríamos 12 horas diante de um ataque como está acontecendo hoje na guerra da Ucrânia, diante de um enfrentamento com uma força armada que tem investimento apenas três vezes maior do que o nosso. 

Fórum: Como fazer essa reforma se os militares são tão refratários à influência política dos eleitos? 

Eu acho que o problema dos militares, na minha percepção, não é um problema dos militares, é um problema dos civis.

Os militares, desde a transição conservadora em 1985 [fim da ditadura militar], quando eles tutelaram todo o processo, inclusive a Constituinte, e asseguraram o famigerado artigo 142 da Constituição, com a linguagem que ele tem, que é deliberadamente para gerar essa interpretação delirante de que as Forças Armadas tem papel na garantia da lei e da ordem, eles ficaram soltos, os civis não tomaram a rédea da situação.

É o presidente da República e são os parlamentares que tem a função primordial de definir como devem ser as Forças Armadas. Até mesmo numa guerra, quem define o ingresso de uma determinada Nação numa guerra não são os militares, não são os comandantes, é o poder político, é o presidente da República que submete ao Congresso uma aprovação de uma declaração de guerra, de uma decisão tão drástica.

Então eu acho que, mais que qualquer coisa, falta coragem do poder político, da sociedade civil, das instituições, de assumirem esta condução efetiva das Forças Armadas, que são um serviço público,  que se diferencia do serviço público civil pelas características específicas e pelo monopólio que tem do poder, do uso das armas.

Tenho a sensação de que o governo Lula titubeia, mesmo com toda a legitimidade que teve na eleição do ano passado, de derrotá-los também -- porque os comandos militares que atuaram como partido político foram derrotados na sua ambição de reeleger uma chapa militar com o capitão Bolsonaro e o general Braga Neto.

Era uma chapa militar, que sucederia outra chapa militar, do Bolsonaro e do Mourão.

Então o presidente Lula, que tem essa legitimidade de ter derrotado eles na eleição anterior, e dentro de um contexto de um descrédito e desmoralização das Forças Armadas, por conta do desastre que promoveram no país -- jogaram o país no precipício durante os últimos quatro anos, especialmente com genocídio durante a pandemia -- e que atentaram contra a nossa democracia, nós nunca tivemos um ambiente político e institucional tão favorável para que esta reforma militar fosse feita.

Acho que isso não for aproveitado, se for dada a eles uma outra anistia, como foi dada a anistia em 1985, que nós estaríamos expostos a uma repetição da História como farsa ou como tragédia, como diria o Marx, na primeira oportunidade que eles tiverem para conspirar contra o poder civil.

Eu parto do pressuposto de que eles tem um projeto próprio de poder e eles não abandonam essa ideia de serem um poder moderador, os tutores da nossa democracia, e que eles são melhores que os paisanos para cuidar dos destinos do nosso país.

Eles certamente ambicionarão em outro momento, quando conseguirem recompor a sua popularidade, se apresentar como uma força alternativa dentro da nossa democracia.

Bolsonaro fez "reforma" da Previdência dos militares que garantiu a eles vários privilégios. Agência Brasil

Fórum: O 11 de setembro marca os 50 anos do golpe contra o Salvador Allende no Chile. A situação política do Chile sofreu uma mudança muito grande, muito rápida. Você teme que no Brasil a situação possa mudar num estalar de dedos?

No Chile, se nós considerarmos que 2019 é o marco das grandes rebeliões havidas no país, que conquistaram, desde uma perspectiva antineoliberal, surgiu a ideia de realizar um processo constituinte para elaborar uma Constituição pós-pinochetista.

No curso de dois anos houve uma reviravolta tremenda, em que a grande conquista popular foi derrotada por uma maioria também do povo chileno, que é pobre, povo trabalhador, que simplesmente transmuta sua percepção para uma opinião distinta da que tinha tido dois anos atrás. 

Sobre essa possibilidade de haver uma reviravolta aqui, também em relação aos militares, é esse o seu questionamento?

Eu te diria que esta possibilidade é tanto mais crível quanto menos for feito em relação aos militares.

À medida em que eles se sentirem autorizados e conseguirem garantir a sua impunidade, em que pese tudo que a gente conhece sobre o envolvimento de oficiais da ativa e da reserva em atos não só de corrupção, ilícitos, desvios, mas também em ataques à democracia.

Veja bem, nem o Mauro Cid está sendo objeto de um procedimento administrativo no Exército Brasileiro. Não tem nada correndo contra ele. Nem o general [André] Allão, do Décimo Comando Militar em Fortaleza, que disse que militares deveriam desobedecer ordens de outros poderes.

Nem o tenente coronel Fernandes da Hora, que era o comandante da guarda presidencial no Planalto e que foi cúmplice de predadores das Forças Armadas que estavam lá dentro [no 8 de janeiro]. Nenhum deles está respondendo a processo no âmbito das Forças Armadas.

Se isso for uma regra, acho que a probabilidade de termos uma surpresa histórica numa conjuntura de instabilidade e de muita tensão social, onde pode haver uma crise política e institucional do regime civil, não tenho dúvidas que os militares poderão se alçar novamente ao exercício do "poder moderador", que eles se auto-atribuem delirantemente.

Porém, se isso vier a acontecer, não teremos aqui o amadorismo, do ponto de vista do descontrole do processo, como vimos até agora [depois da derrota eleitoral de Bolsonaro], que foram completamente incapazes. Acho que eles aprenderam. Se eles voltarem, voltam para algo muito pior do que a gente viu nesses últimos quatro anos de Bolsonaro.