No 13 de maio de 1888 os relatos são de festa. Foi um dia em que a população negra celebrou, embora a lei, com apenas dois artigos, tenha libertado cerca de 800 mil escravizados numa população cujo censo de 1990 apontava quase 14,5 milhões de pessoas, das quais 58% eram pretos ou pardos, 38% brancos e 4% indígenas.
No Brasil, os cativos foram atrás de sua própria liberdade, fosse por meio da fuga, da criação de quilombos, das negociações com senhores para melhorar suas condições de vida, evitar a venda de seus companheiros, companheiras e filhos, para conquistar alforria. A partir do terceiro quartel do século 19, a Lei de 1871, além do “ventre livre”, criou dispositivos que facilitavam a alforria pela compra de sua própria liberdade, dos filhos e de outros entes queridos.
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A Lei Áurea deveria ter sido o fim da chaga da escravidão, a instituição mais duradoura do Brasil. Deveria ter findado a vergonhosa marca de o Brasil ter sido o último país a acabar formalmente com a escravidão. Mas ela não deu acesso à terra aos ex-escravizados, não possibilitou acesso à educação, não trouxe cidadania. Ao contrário, a República conservadora que nasceu no ano seguinte por meio de um golpe, motivado em grande parte porque a monarquia aboliu a escravidão, mapeou o corpo negro como um corpo a ser vigiado, explorado e, se resistente, um corpo a ser aniquilado.
É por isso que para ativistas negros do combate ao racismo não importa que a princesa Isabel usasse a camélia na lapela, um símbolo abolicionista; não importa que ela fosse genuinamente abolicionista e tenha aproveitado a regência para assinar a Lei Áurea. Para a população negra que construiu o Brasil ao longo de quase 400 anos na condição de escravização, é preciso igualdade e equidade que nem os governos mais democráticos e progressistas foram capazes de construir.
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Retirado do avião
Preto Zezé, presidente da Cufa sempre pergunta ironicamente: “Se a bala é perdida, porque ela sempre acha o corpo negro?” As chacinas das periferias das grandes metrópoles sempre miram o corpo negro, as mães de adolescentes e jovens negros nunca dormem tranquilas, nunca! Seu filho não pode usar um moletom com capuz: aos olhos das polícias, o corpo negro é o senhor da suspeição.
Para pensar criticamente o 13 de maio e a perversa continuidade do racismo estrutural do Brasil, que permeia toda a sociedade e que estabelece as relações de desigualdades no mundo do trabalho, convidamos no Fórum Sindical da última quinta (11/05)[1] a deputada estadual do Rio Grande do Sul Laura Sito, a diretora do Sindipetro Bahia Elizabete Sacramento, a secretária-geral do Sindae-BA (Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente no Estado da Bahia), Nadilene Nascimento, e o professor Dennis de Oliveira (ECA-USP).
Nadilene Nascimento fala desta angústia de toda mãe preta quando seu filho cresce e vai para escola, vai trabalhar ou sai com os amigos: “Eu fico muito preocupada quando meu filho sai, minha pressão sobe. Ele é um rapaz negro de 23 anos, quer se divertir, quer aproveitar a vida e eu fico preocupadíssima, porque ele é o alvo principal. Esta é nossa realidade e temos de mudar, temos de reagir”.
O racismo produz a pobreza, a desigualdade, produz o genocídio da juventude negra. O racismo humilha a população negra nos supermercados, shoppings e até dentro do avião.
Quando o racismo é disseminado, como o é na sociedade brasileira, ele é naturalizado a ponto de a Polícia Federal entrar dentro de um avião, prestes a decolar, retirar um deputado estadual para fora da aeronave, fazer revista em sua mochila e em seu corpo, e os demais passageiros do avião dizerem que isso “acontece com todo mundo”. Foi o que ocorreu com Renato Freitas nesta semana: o corpo negro, mais uma vez, foi a escolha “aleatória” do racismo institucional.
Protocolo antirracista
A deputada estadual do Rio Grande do Sul Laura Sito criou um projeto de lei que visa construir um protocolo antirracista no estado. Foi em Porto Alegre nas dependências do hipermercado Carrefour que, nas vésperas do 20 de novembro de 2020, João Alberto Silveira Freitas, um trabalhador negro, foi espancado até a morte por dois seguranças brancos. Os assassinos trabalhavam como agentes de uma empresa de segurança, foram presos em flagrante por homicídio triplamente qualificado. O PL da deputada gaúcha prevê um protocolo antirracista para estabelecimentos de grande circulação de pessoas com o intuito de conscientizar proprietários, gestores e colaboradores para que criem espaços antirracistas e boas práticas no combate ao racismo e preservem vidas, que assegurem que pessoas negras tenham garantido seu direito de ir e vir.
O PL prevê ainda medidas como a disponibilização de material informativo, treinamento de funcionários, implementação de políticas de incentivo à paridade racial no quadro, espaço físico reservado para o acolhimento imediato da vítima, acompanhamento, identificação e denúncia do ocorrido, até o deslocamento para delegacias especializadas ou atendimento psicológico. Além disso, outras medidas incluem o acionamento de autoridades policiais e a facilitação da coleta de provas para investigação.
A iniciativa é valiosa e necessária e esperamos que o projeto seja logo aprovado e vire referência para o Brasil.
Não existe democracia com racismo
O professor Dennis de Oliveira nos lembra que classe não é uma coisa abstrata, ela se dá em condições objetivas da exploração das cadeias globais de suprimento: "A tela de cristal líquido dos smartphones é feita com coltan do Congo, extraído por crianças escravizadas". E prossegue:
"O trabalho precarizado, o trabalho análogo à escravidão, o trabalho nas condições indignas faz parte de toda a cadeia produtiva, está vinculado aos espaços mais sofisticados de consumo e produção, a exemplo das vinícolas mais famosas do Brasil denunciadas por trabalho escravo ou da indústria da moda, e até ao Estado: em 2020, até mesmo os coletes do IBGE foram produzidos por trabalhadores em condição análoga à escravidão."
Assim, quando falamos em classe trabalhadora, em luta de classes, não há como não incorporar o recorte racial. Classe no Brasil é raça, o trabalho no Brasil nasce do tráfico negreiro, da escravização de milhões de africanos trazidos para cá forçadamente. “A rebeldia de classe no Brasil começou com os quilombos. Não há como os sindicatos não avançarem neste debate”, e conclui: “O avanço da extrema direita, do bolsonarismo está sustentado na discussão racial. Eu acho que a população negra das periferias nunca vivenciou plenamente a democracia no Brasil e se estamos lutando pela democracia temos de exterminar o racismo no Brasil”.
Assim, falar em democracia no Brasil significa superar o racismo. Combater o racismo comportamental é uma tarefa de todos os que desejam um país com equidade. Combater o racismo institucional e estrutural é papel de sindicalistas, é papel de empresários com projeto nacional, é papel de comunicadores, de educadores, da mídia, dos movimentos sociais, das polícias, da Justiça, é papel do Estado brasileiro. E, para estabelecermos uma verdadeira democracia com igualdade e equidade racial, precisamos secar as lágrimas das mulheres negras seja pelo assassinato dos seus filhos, maridos, seja pela fome, como denunciou ontem a quilombola Rosemeire dos Santos[2] do Quilombo Rio dos Macacos, território que há décadas foi apartado e é acossado pelas Forças Armadas.
Precisamos acabar com a reforma trabalhista que precarizou ainda mais as condições de vida e trabalho da imensa maioria dos trabalhadores do país (hoje com 208 milhões de habitantes), 56% deles formados por trabalhadores negros e negras, em sua maioria em condições de vida e trabalho bastante precarizadas. Precisamos gerar empregos decentes de forma sustentável, precisamos descolonizar novamente o Brasil para o 13 de maio ganhar seu verdadeiro sentido: uma abolição com igualdade e equidade.
[1] A reprise do programa vai ao ar no sábado (13/05) na TV Fórum.
[2] VÍDEO: Lula se emociona após mulher subir ao palco, se ajoelhar e chorar: "Nosso povo tá morrendo", disponível em < https://revistaforum.com.br/brasil/2023/5/12/video-lula-se-emociona-apos-mulher-subir-ao-palco-se-ajoelhar-chorar-nosso-povo-ta-morrendo-135770.html>
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