Eu senti um frio na espinha naquele junho de 2013, no meio de uma multidão, quando a massa de jovens conseguiu sobrepor sua voz à de militantes de esquerda com o grito de “sem partido, sem partido”.
Eventualmente, a turma encabeçada por petistas acabou expulsa da avenida Paulista, com agressões e a tomada de bandeiras vermelhas, queimadas em comemoração.
Era a maioridade da geração dos smartphones, surgida no início dos anos 90 do século passado, base sobre a qual o mundo viu nascer a comunicação instantânea de todos com todos.
Muitos daqueles jovens de então, majoritariamente homens e brancos, estão hoje no grupo de brasileiros que se definem como “bolsonaristas”.
A eles pouco importa a filiação partidária do líder. São revolucionários no sentido clássico da palavra: pregam a destruição do Sistema.
No caso, da democracia representativa.
Os jovens fascistas da avenida Paulista não são um fenômeno ahistórico.
Nos anos 80, um dos pais do neoliberalismo no poder, Ronald Reagan, ocupante da Casa Branca, prometeu “tirar o Estado das costas do povo”.
O Estado, neste caso, como mediador de disputas políticas, que eventualmente cede a pressões populares. O que Reagan queria dizer, de fato, é que eliminaria impostos cobrados do topo da pirâmide social.
Os ricaços ficariam tão cheios de dólares que, eventualmente, parte desta riqueza “escorreria” para prover o bem estar de todos. Era a “trickle down economics”, uma fábula com toques bíblicos.
O ator de Hollywood chegou ao poder em circunstâncias extraordinárias: conduziu uma frente que incluía protestantes, católicos e judeus conservadores, fervorosos “defensores da família”.
Curiosamente, a do divorciado Reagan estava fora dos padrões da moral e dos bons costumes que ele próprio pregava.
Reagan foi o primeiro líder importante do neoliberalismo a trazer o divino para dentro da Casa Branca.
No caso específico, por interesse eleitoral: a aliança com a direita religiosa finalmente permitiu ao Partido Republicano ter sua própria militância, para disputar espaço com o sindicalismo tradicionalmente democrata.
Quando eu deixei a avenida Paulista naquela noite de junho de 2013, finalmente caiu a ficha: a extrema direita estava de volta.
Eram ecos da Ação Integralista Brasileira (AIB), o agrupamento político que teve algum sucesso eleitoral nos anos 30, em Santa Catarina, curiosamente comandado lá por Miguel Reale, o pai do homem que em breve formalizaria o pedido de impeachment de Dilma Rousseff.
Porém, vivíamos em um contexto completamente diverso.
A primeira geração do smartphone cresceu num momento em que o Brasil se desindustrializava rapidamente e não criava empregos de qualidade para atender às demandas da classe média e até mesmo dos pobres que com muito esforço completaram o ensino superior.
A indústria, com seus horários fixos de entrada e saída e seus relógios de ponto, é eminentemente uma disciplinadora social.
Olhando nos olhos daqueles jovens da Paulista, estava claro que eram movidos pelo ressentimento, pela antipolítica que nasceu e se fortaleceu com o ultraneoliberalismo. Lava Jato e o filme Tropa de Elite se confundem naquele momento do Brasil.
O ápice deste movimento apartidário se deu em 2018, com a ascensão de Jair Bolsonaro ao Planalto, montado no lema Deus, Pátria e Família.
Curiosamente, Bolsonaro se diz católico, mas recebeu batismo evangélico nas águas do rio Jordão. Ele se apropriou dos símbolos da Pátria, mas na prática seu governo não se preocupou em preservar os bens públicos.
Pelo contrário, com o desabamento da globalização unipolar, Bolsonaro se enquadra em um novo tipo de nacionalismo da periferia, completamente dissociado da defesa da soberania, embora superficialmente encoberto pelos símbolos nacionais.
Não por acaso, ele é o Mito. De um mito não se requer explicações, nem mesmo de um “defensor da família” que já teve várias.
O Mito paira sobre a sociedade. Goebbels construiu o mito de Hitler através do que havia de mais moderno na comunicação da época: o rádio e o cinema.
Bolsonaro é anti-herói digital. O homem comum que luta contra tudo e contra todos, uma reencarnação tropical de Donald Trump.
Don Regan, assessor de imagem de Ronald Reagan, costumava dizer que gostava de ver aparições presidenciais nas TVs sem som dos aeroportos: as imagens falavam mais que as falas dos repórteres e comentaristas.
Este é o mundo que herdamos: o homem da Bic, do chinelo e do pão com leite condensado é despretensioso, manipula as imagens como se não se importasse com elas, cumpre uma missão que lhe foi dada por Deus.
Desde Reagan, o divino solapou a separação entre igreja e Estado. O ex-alcoólatra George W. Bush, que se dizia salvo por Jesus, orou a Deus por orientação antes de autorizar a Operação Choque e Espanto, que demoliu o Iraque muçulmano.
O ultraneoliberalismo também minou as bases da esfera pública e a ideia de que problemas coletivos demandam soluções coletivas.
Numa decisão histórica, a Suprema Corte dos Estados Unidos considerou que empresas são iguais a “pessoas”, para fim de doações eleitorais.
Gurus, mentores, coachs e defensores da auto-estima propõem que a solução para problemas sociais está no indivíduo. Você é o único responsável por seu próprio fracasso.
O bolsonarista do Uber que se acredita empreendedor não existe no vácuo.
Não falta ressentimento na sociedade brasileira para impulsionar um movimento que, pela pesquisa mais recente, agrega 22% dos eleitores.
O Mito tentou combater a covid, mas foi impedido pelo Supremo Tribunal Federal, argumentam. Foi traído por aliados. Se não fez mais, foi porque não deixaram. Ele é alvo de perseguição.
Há contornos claros de uma seita, que rejeita a política e, portanto, subsiste “fora das quatro linhas”. Não há cobrança por um projeto de construção, mas de demolição.
Sem uma vigorosa recuperação econômica, tudo indica que esta seita chegou para nos assombrar a longo prazo, um Brasil Paralelo que é ferramenta essencial, no mínimo, para manter as iniquidades de uma sociedade fortemente hierarquizada e desigual.