O ex-presidente do Equador, Rafael Correa, deu uma entrevista ao jornal Folha de S. Paulo que pode ser dividia em duas partes: uma análise realista sobre as condições políticas e sociais dos atuais governos de esquerda da América Latina e um segundo momento em que o político incorre em erros que, ao contrário do que ele pensa, ajudaram e ajudam a extrema direita contemporânea a se manter em evidência.
Em determinado momento da entrevista, Rafael Correa é instado a opinar sobre as pautas LGBT, políticas das identidades e aborto, e a resposta do líder da oposição equatoriana não poderia ser pior. Para Correa, tais demandas sociais são impostas pelos países capitalistas "para distrair" a luta contra as desigualdades.
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"É um erro colocar isso como central em nossa agenda. Sim, são problemas, têm que ser tratados com muito respeito. Mas nem sequer resolvemos os problemas do século 18, as grandes contradições, a pobreza generalizada, a desigualdade, a exploração. E nos metemos a tentar resolver e ser vanguarda do mundo de problemas de última geração. Alguns estão na fronteira da questão moral, são problemas. Se ser progressista é assinar esse checklist, não sou progressista. Ficamos discutindo isso, e o que sim, gera consenso na esquerda, a pobreza, a desigualdade, deixamos de tratar", afirma Correa.
Em seguida, ele atribui tais questões à uma estratégia da direita. "Creio, inclusive, que é uma estratégia do norte, da direita, colocar para nós estes temas conflituosos para nos distrair do essencial: que estamos no continente mais desigual do planeta. E hoje ficamos brigando sobre casamento gay, aborto em qualquer momento [...] no plano pessoal, tenho o que chamo de posições conservadoras. O que incomoda é que isso defina o que é ser de esquerda. Se Che Guevara estivesse contra o aborto sendo médico, não seria mais de esquerda? Se [Augusto] Pinochet estivesse a favor de aborto e casamento gay, não seria de direita?", deplora.
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Rafael Correa também mira a sua metralhadora contra as feministas. "É preciso haver justiça de gênero, por exemplo. Não se pode permitir que no mesmo trabalho a mulher ganhe menos ou que tenha que ficar em casa para o homem trabalhar, cuidar dos filhos, e o home não. Isso é justiça. Mas vêm as feministas e dizem que justiça é poder abortar quando a mulher quiser. Aí vem a polêmica".
Em diálogo com a extrema direita contemporânea, Correa afirma que a família é a união entre um homem e uma mulher. "Eu disse aos gays: existe a uni]ao de fato, com todos os benefícios de um matrimônio. Mas um matrimônio em princípio, por tradição em nossa sociedade, como parte da cultura, é uma união do homem e da mulher, e eu também sigo considerando isso como correto", disse.
Para não perder a crista da onda, Rafael Correa também destila transfobia. "Essa ideia de gênero, que um garoto de 12 anos se sente mulher, é uma loucura terrível. Sempre se deve respeitar. O que não se pode dizer é: 'você se sente mulher, então começa a se vestir como mulher'. Pelo amor de Deus. Pode ser que alguma criança psicologicamente esteja preparada para ter outro sexo, pode ser uma exceção. Mas que não seja regra que um menino de 12 anos se sente mulher e temos que aceitar".
A LGBTfobia de Rafael Correa
Tais declarações de Rafael Correa poderiam - e estão - estar tranquilamente na boca de qualquer liderança da extrema direita. Completamente ignorante sobre questões de gênero e sexualidade, quando Correa fala sobre jovens trans, ele reproduz o mesmíssimo discurso que Nikolas Ferreira (PL-MG) proferiu na tribuna da Câmara no Dia Internacional das Mulheres, quando o parlamentar vestiu uma peruca, declarou se sentir e mulher e que o seu nome era "Nikole".
O ex-presidente do Equador se diz um firme combatente do neoliberalismo, mas, quando ele diz que a família deve seguir as tradições e a cultura da sociedade, ele está justamente reproduzindo a base do pensamento neoliberal: ao Estado cabe apenas regular a economia e a segurança; o restante dos assuntos deve ser regulado a partir dos acordos socais e tradicionais, ou seja, a barbárie.
Infelizmente, o discurso de Rafael Correa - que pode ser facilmente classificado na esfera dos discursos de ódio, pois ele desumaniza outras configurações sexuais e sociais, encontra forte ressonância em parte da esquerda latino-americana, mas nas américas como um todo.
Porém, a parcela da esquerda que é ignorante sobre questões de gênero e sexualidade parece ignorar que tal flanco de luta é a principal investida da extrema direita. Ou seja, quando líderes da esquerda reproduzem o discurso de ódio da extrema direita contra as LGBT e feministas não percebem estão fortalecendo ainda mais a negação dos direitos civis e humanos a determinada parcela da população e, consequentemente passando a ideia de que os conservadores estão certos quando atacam pessoas não heterossexuais.
Dessa maneira, Rafael Correa e outros líderes da esquerda reproduzem o que há de mais retrógrado sobe sexualidades não heteras. Ao fim ao cabo, parecem concordar que o lugar das LGBT é no limbo social alijados de qualquer direito civil.
Rafael Correa, mas também muitas outras lideranças do campo da esquerda, reproduzem ad infinitum a ideia de que primeiro é preciso lidar com as questões econômicas com foco nas desigualdades. Essa tese já caiu por terra há tempos, visto que feministas e LGBT não são seres alienígenas que vivem fora da realidade de uma determinada região, pelo contrário, se esta parcela da esquerda, ao invés de reproduzir ignorâncias e ódios, se debruçasse sobre tais grupos e demandas, descobririam que 90% deles estão presentes na classe trabalhadora.
Ilusão da direita
É de espantar que em pleno século XXI um líder do porte como Rafael Correa reproduza uma ideia tão caricata como essa: de que as pautas LGBT, feministas e antirracistas são criações da direita para atrapalhar a "verdadeira luta política". Isso sim é completamente século XVIII.
Se o ex-presidente do Equador tivesse feito uma rápida pesquisa, ao invés de reproduzir ignorâncias e ódios, descobriria que nas Américas, na Europa, em parte da Ásia e do continente Africano a direita está empenhada em criminalizar novamente as vidas LGBT.
Por fim, em uma coisa Rafael Correa tem razão: as disputas políticas propostas pelas LGBT e feministas são sim fronteiriças e de profunda mudança estrutural, social e cultural, e é justamente por isso que são arduamente combatidas pela extrema direita. São estas questões que ampliam a democracia e que, em certa medida, tem evitado o avanço total da barbárie desejada pela extrema direita contemporânea.