Não faz muito tempo, na minha infância — quer dizer, faz muito tempo —, era razoavelmente comum ver alguém passar assoviando pela rua. Hoje isso desapareceu — pelo menos onde moro.
Cantores também. Um ou outro passava cantando um samba ou uma música daquelas de dor de corno, indiferentes aos demais, ou espalhando suas dores e alegrias entre eles, como saber?
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Isso tudo praticamente desapareceu. Alguém assoviando uma canção é coisa que não escutava nas ruas havia séculos.
Até que há uns meses, para minha surpresa, passou um morador de rua completamente bêbado cantando Lulu Santos, Como uma Onda, trocando a letra e as pernas pela rua Vinícius de Moraes.
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Afora isso, nada. Só o alarido do trânsito e pessoas falando ao telefone.
Mas, na semana passada, tive a impressão de ouvir alguém cantando. Eu estava escrevendo em casa. Era uma voz masculina, e a pessoa parecia varrer enquanto cantava.
Ainda no mesmo dia, mais tarde, tornei a ouvir o que me parecia ser um faxineiro cantor. Não me lembro a música, mas era alegre e ele parecia feliz. Nos dias de hoje, era uma conjunção quase impossível.
Não cantava bem. Mas cantava. E cantar, mesmo que mal, deveria ser um direito assegurado na Declaração Universal dos Direitos Humanos: Artigo tal, parágrafo tal, Todo ser humano tem o direito de cantar, ainda que mal, se assim lhe aprouver etc... Afinal, como lembra uma canção afinadíssima, no peito do desafinado também bate um coração.
Voltando ao faxineiro cantor, vem um mistério. Ele continuou a cantar no outro dia, e no outro. Músicas diferentes, com a mesma emoção e alegria. Mas eu não conseguia descobrir de onde vinha a voz.
Perguntei no meu prédio. Nos prédios vizinhos. Ninguém conhecia. Pior: ninguém parecia ouvir o faxineiro cantor.
E se não fosse faxineiro, mas um morador com um TOC por limpeza? E se somente eu estivesse escutando o faxineiro cantor?
Não era possível. Embora minha vizinha também me dissesse que nunca o escutara. Era um mistério.
Pensei que os porteiros o ouvissem, mas não dissessem quem era com medo de que fosse demitido ou sofresse outra punição baseada no regulamento não escrito, mas vigente em todo local de trabalho: "É proibido ser feliz durante o expediente".
Não tive como desvendar o mistério, porque assim como surgiu, o faxineiro cantor desapareceu. Nunca mais ouvi sua voz. Escutava a vassoura e seu rac-rac onomatopaico, mas nada do cantor. Seria um novo faxineiro? Ou será que o faxineiro cantor foi proibido de cantar pelo "regulamento"?
Ou mais: há quem ande cantando por aí, inclusive o faxineiro cantor, e nós é que já não os conseguimos ouvir neste mundo (ab)surdo?
*Antonio Mello, escritor, blogueiro do Blog do Mello, autor do romance ELA (linktr.ee/blogdomello) publica uma crônica todo domingo aqui na Fórum.