Da primeira vez que li Kafka, não foi “A Metamorfose”, ou “O Processo”, ou “O Castelo”, ou “Carta a Meu Pai”, mas “América”. Por que “América”? Por que disseram que Fellini gostava do livro e pensava em filmá-lo.
Estava no meio de “América” quando li “A Metamorfose”, e aí fui finalmente apresentado ao universo kafkiano. Mas há um Kafka não kafkiano – se é que me entendem – e foi um conto deste que me veio à cabeça, enquanto andava na manhã de sábado pela Visconde de Pirajá, a rua mais movimentada de Ipanema.
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Voltava para casa, após umas compras no supermercado (vivo fazendo compras no supermercado, é quase um vício, sobre o qual comento algum dia), quando vi à minha frente o dragão lilás e o pipoqueiro.
Não há novidade ou surpresa alguma nisso. Eles sempre estão ali naquele mesmo ponto da Visconde, em frente a uma galeria. São contratados de uma loja de calçados infantis. O dragão brinca com as crianças, oferece-lhes um cartão da loja, convida-as a conhecê-la. Ah, ia esquecendo: oferece a pipoca também, grátis.
É um dragão lilás, de aproximadamente um metro e oitenta de altura. A pessoa que o veste tem uma voz indefinível: não consigo saber se é jovem, nem se é homem ou mulher. Tenho uma filha de cinco anos que o adora, ele fala muito com ela, mas não consigo decifrar o mistério.
Mas, por que me veio à cabeça este relato breve de Kafka?
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Contemplação distraída à janela
“Que podemos fazer nestes dias de primavera, que já se aproximam rapidamente? Esta manhã cedo, o céu estava cinzento, mas se agora a gente se chega à janela, surpreende-se e apoia a face contra o batente.
Embaixo, vê-se a luz do sol que se despede sobre o rosto da jovenzinha que passa olhando em volta; ao mesmo tempo vê-se nele a sombra de um homem que se aproxima rapidamente.
E depois o homem passa, e o rosto da menina está inteiramente iluminado”.
(tradução de Torrieri Guimarães)
É incrível como Kafka consegue, com três pequenos movimentos, descrever a grande transformação que acontece com a menina. A luz do sol. A sombra de um homem. A sombra sai, e o rosto fica inteiramente iluminado.
Não sei por que me veio à cabeça esse relato de Kafka. Mas logo essa lembrança se apagou, porque, à distância, tive a impressão de que o dragão e o pipoqueiro discutiam. Não aos berros, mas uma discussão pra dentro, como costumam ser aquelas discussões de casal, que são como um céu carregado de nuvens que trovejam até que explodem numa chuva torrencial.
Então me vem à cabeça a ideia esdrúxula de que o dragão e o pipoqueiro são casados. Ela é uma dragão. Seus gestos sugerem uma briga. Ela encosta no rosto o monte de cartões que tem para distribuir, como se escondesse a boca que xinga o amante. Mas isso é um absurdo, porque ela está completamente escondida pela fantasia de dragão.
Eu me aproximo deles, e agora me vem a certeza de que estão realmente discutindo. Pararam como estátuas, coisa que a dragão tenta logo disfarçar, cruzando as pernas e olhando na direção oposta à do pipoqueiro. Este se volta para as duas montanhas de pipocas dentro da carrocinha: uma doce, outra salgada.
Diminuo o ritmo, mas só consigo ouvir um suspiro – não sei se da dragão ou do pipoqueiro. Diminuo ainda mais meu ritmo – a ponto de quase parar – para ver se pego alguma coisa da história. Mas não escuto nada, apenas o alarido natural do trânsito das manhãs de sábado.
Resolvo esquecer o assunto, seguir meu caminho, voltar para casa. Mas não consigo. Será que estão brigando mesmo?
Decido olhar para trás. Estão juntos novamente. A dragão lilás abre os braços, o pipoqueiro volta-se para ela. Resolvo dar meia-volta e passar por eles mais uma vez. Quem sabe decifro o mistério. O diabo é que as sacolas estão pesadas.
Agora é o pipoqueiro que faz que não com a cabeça duas vezes e volta-se para a carrocinha, dando as costas para a dragão.
Já estou a caminho. Pode ser que dessa vez descubra tudo. Ainda mais que eles estão de costas para mim. Por isso a dragão parece tão desinibida e mexe os braços, enquanto o pipoqueiro finge (pelo menos é o que acho) mexer e arrumar as montanhas de pipoca. Com certeza não quer brigar ali. Podem perder o emprego.
Eu me aproximo do casal. Mas, da direção oposta, vem uma babá com uma criança pequena. Uma menina de no máximo três anos de idade. Ela corre para a dragão. Eu diminuo meu passo. A dragão entrega um cartão para a criança. Depois, brinca um pouco com ela, faz-lhe pequenos carinhos, pega-a até no colo. Por fim, apanha um saco de pipocas com o pipoqueiro e coloca em suas mãos pequeninas.
Estou parado, a cinco metros deles, quando a babá e a menina se despedem do dragão. “O rosto da menina está inteiramente iluminado”.
*Antonio Mello, escritor, blogueiro do Blog do Mello, autor do romance “ELA” (linktr.ee/blogdomello), publica uma crônica todo domingo aqui na Fórum.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.