Eram amigos inseparáveis, desde a infância. Moravam não somente no mesmo bairro, mas na mesma rua, em prédios vizinhos. Juntos brincaram na pracinha, foram adolescentes, descobriram namoradas, mas um dia se separaram num rompimento que parecia definitivo. Até a feijoada de hoje a que os dois aceitaram comparecer, mesmo avisados da presença um do outro.
A expectativa dos outros amigos era grande sobre o que aconteceria. Corria até uma aposta paralela sobre o desfecho.
Mas tudo parecia correr bem. A amizade falaria mais alto. Afinal, sempre tiveram personalidades diferentes e eram os melhores amigos, apesar disso.
Quando casaram, um foi padrinho do outro. Idem quando vieram os filhos. Os amigos viraram compadres e os laços se estreitaram com a cumplicidade que não se vê entre muitos irmãos.
Até que chegou 2018 e vieram as eleições. Um era Lula e o outro, Bolsonaro. Quando Lula foi proibido de concorrer e as fake news invadiram as redes, as posições se radicalizaram de um jeito que os demais amigos da dupla de amigos inseparáveis tiveram que fazer uma coisa impensável até então: apartar os dois num início de briga física. Que se transformou num radical rompimento de relações.
A separação, como disse no início, parecia definitiva, até a feijoada de hoje. Que começou mal, quando o bolsonarista chegou para a feijoada vestindo a camisa da seleção, de bermuda e com a tornozeleira eletrônica ostensivamente à mostra. Tornozeleira que lhe foi colocada por participar da tentativa de golpe de 8 de janeiro em Brasília, quando foi preso, com milhares de outros. Tornozeleira que ele fazia questão de exibir com orgulho, como uma condecoração de guerra.
O amigo apenas arregalou um pouco os olhos, mas o máximo que fez como comentário foi movimentar um pouco os lábios num leve sorriso irônico.
De resto, eles participavam da feijoada normalmente, conversando com os demais, mas nunca entre si.
Até que veio o primeiro diálogo entre os dois por um motivo trivial. Se aquela era ou não uma feijoada completa.
— Se não tem orelha não é completa.
O outro discordou e os demais também resolveram entrar na conversa, cada um defendendo uma posição, não só porque o assunto é polêmico, mas para evitar um duelo entre os dois.
Mas os dois pareciam não ouvir os demais e falavam um olhando nos olhos do outro. Inicialmente falando baixo, mas o tom foi subindo à medida em que um acusava o outro de radical e o outro acusava o um de não aceitar a tradição.
Para tentar descontrair, alguém citou o grande Aldir Blanc, que dizia que a feijoada para ser completa tem que ter uma ambulância na porta.
Todos riram. Menos os dois. E foi aí que alguém lançou a célebre frase: Se tem linguiça de porco, pé de porco, rabo de porco, ou é porco ou feijoada. Vamos mudar de assunto.
— Por mim, tudo joia — disse alguém, que certamente apostou num desfecho negativo.
O de camisa da seleção e tornozeleira sentiu que a palavra "joia" era uma indireta pra ele e saiu em defesa de seu mito.
O amigo ficou calado, apenas ouvindo os outros levantarem as acusações sobre os relógios de ouro, o colar de diamantes, as joias avaliadas em quase R$20 milhões de reais que Bolsonaro quis embolsar, mas foram confiscadas pelo TCU por serem do Estado brasileiro.
A cada acusação o homem da tornozeleira subia sua indignação. Começou a chamar os acusadores de comunistas e a defender Bolsonaro do mesmo modo que este se defende: botando a culpa nos outros. A culpa era do almirante. A culpa era do ajudante de ordens. A culpa era da Receita.
Até que o amigo, que se mantivera calado até então, falou:
— Quem tem em sua posse objetos dos outros — relógios, abotoaduras, canetas, colares — ou é ladrão ou Bolsonaro.
Foi o sinal para que o pau comesse solto e tornasse a feijoada completa, quando a ambulância chegou para socorrer os feridos.
*Antonio Mello, escritor, blogueiro do Blog do Mello, autor do romance ELA (linktr.ee/blogdomello) publica uma crônica todo domingo aqui na Fórum.
**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.