Foi-se uma daquelas pessoinhas imprescindíveis. Tive o privilégio de conhecer Adriana – há quase uma década – quando trabalhava como assessor parlamentar na Assembleia Legislativa paulista.
Foi amor à primeira vista. Eu: bicha militante dos direitos humanos. Ela: intelectual feminista com deficiência e ativista antinazista.
Adriana era um furacão. Carismática. Pesquisadora, intelectual sofisticada e ao mesmo tempo um quadro organizativo, militante social e partidária. Com ela tomei contato com a luta das pessoas com doenças raras – tema tão complexo quanto pouco conhecido – e quase praticamente ignorado em nossas políticas públicas.
São cerca de 7 mil doenças raras! Sim é isso mesmo. Para 95% delas não há cura. Pelo menos 13 milhões de brasileiras e brasileiros vivem com alguma enfermidade desse tipo.
Esclerose múltipla, hemofilia, neuromielite óptica, autismo, acromegalia, doença de Cushing, tireoidite autoimune, doença de Addison, hipopituitarismo, anemia de Fanconi, demência vascular, doença de Hodgkin, encefalite, fibrose cística, hiperidrose, osteogênese imperfeita, síndrome de Guillain-Barré, hipotireoidismo congênito estão entre as mais conhecidas.
Adriana eram muitas e gostava de viver fazendo tudo ao mesmo tempo agora. Mestre e doutora em antropologia pela Unicamp focou toda sua produção acadêmica na pesquisa e mapeamento dos grupos neonazistas em território brasileiro.
Corajosamente, desde 2002, se enfiou no submundo mais abjeto para dali nos dar notícias – explicar-nos como as trevas se formavam e quem estava lá.
Minha amiga era hacker – navegava pela deep web e quetais. Investigava minuciosamente (melhor que a nossa polícia especializada) cada passo dos 'nazifaxos' tupiniquins. Segundo o Intercept: uma verdadeira “caçadora digital de nazistas”.
Pesquisando essa coisa por tanto tempo – e tão rigorosamente – acumulou um vasto arquivo sobre o que de pior há. Debruçou-se a catalogar/decifrar um variado conjunto de símbolos, códigos, sinais. O instrumental utilizado pelos grupos nazi para fazer propaganda e comunicarem-se entre si – sem despertar suspeitas.
Do copo de leite branco na live do Bozo (maio de 2020) ao indicador e polegar unidos do assessor especial da Presidência, Filipe Martins, em plena sessão do Senado (março de 2021), o neonazismo saiu do armário.
Essencial que a esquerda conheça o que é esse imenso universo neofascista, neonazista, racista, supremacista, misógino homofóbico – as verdadeiras ideias da extrema-direita brasileira e mundial.
Certa vez, Adriana foi na jugular de Monark quando o famoso podcaster reacionário (pretensamente ingênuo) postulou a legitimidade de um partido nazista no Brasil: “A punição precisa ser exemplar para a gente mostrar que não concorda, não podemos deixar chegar no extremo absurdo".
Não tenho a menor ideia do que mais orgulhava Adriana entre tantos de seus feitos. A Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras (2014) tem muito do esforço dela. Ademais, escrutinou e monitorou os grupos neonazistas brasileiros jogando holofotes sobre essa pauta. Trabalho áspero, perigoso e quase solitário.
O tour de force das peraltices de Adriana foi desencavar uma carta de Bolsonaro enviada a sites neonazi em 2004. Daí que ela foi destaque no Fantástico em janeiro, principal fonte de bela reportagem sobre o crescimento de grupos extremistas no Brasil.
Nos últimos meses Adriana se somou à luta e ajudou organizar a Associação Nacional em apoio e defesa das vítimas de Covid ao lado do incansável Renato Simões.
Vou sentir falta, mas quero celebrar muito a existência e o legado dessa moça.
Finalizo compartilhando uma pitada do humor da baixinha. No último dia 11 de janeiro do ano da graça de dois mil e vinte e três, senhora Dias-Higa postou o seguinte no feicibuqui.
“Considerando que manifestaram dificuldade de ir ao meu enterro e, tendo ainda não morrido, e não querendo atrapalhar a vida de ninguém, podemos reagendar a minha morte para uma data que seja conveniente a todos – o que acham?”
Adriana Dias Higa: presente!