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Os dois versos de Cazuza que sentenciam o destino de Javier Milei

Presidente argentino, de fato, quer tornar-se ditador e pôs em marcha seu plano. Tenho claro o que acontecerá com o descabelado extremista, e a conclusão vem da canção

Javier Milei e Cazuza.Créditos: YouTube/Reprodução
Escrito en OPINIÃO el

Após um trucidante ‘revogaço’ com mais de 300 medidas que colocaram abaixo toda a regulação de pelo menos 30 setores econômicos da Argentina, já nas primeiras horas ocupando o cargo de presidente, agora Javier Milei anuncia seu “decretaço”, a ‘Lei Ônibus’, para quem deu o eufemístico e pomposo nome de “Leis de Base e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos”. De fato, um eufemismo, uma vez que a medida implica, como resultado final, na conversão do ‘presidente Milei’ no ‘ditador Milei’.

A ‘Lei Ônibus’ simplesmente, para ficar numa explicação sucinta, proíbe a organização de protestos e a reunião de pessoas, prevê a penalização de quem se colocar como crítico do governo e institucionaliza a suspensão das funções reais do Congresso Nacional, dando ao presidente poder para governar por decreto. É isso que o descabelado chefe de Estado, eleito por uma margem folgada de votos, chama de “Leis de Base e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos”. Ele não é o primeiro a agir assim, inclusive na própria Argentina.

Dois versos da aclamada canção “O Tempo Não Para”, de Cazuza, ao serem analisados com lupa e tomados desinteressadamente como presságios, em que pese o fato de a poesia num contexto amplo ter outra interpretação, podem ser a chave para prevermos o destino que terá Javier Milei caso persista, efetivamente, na ideia de levar seu arroubo autoritário a diante (não restam dúvidas que, a essa altura, é o que ele fará).

Na música do imortal compositor brasileiro, lá pelas tantas, o autor diz “eu vejo o futuro repetir o passado”, e, no caso de Milei, isso é muito evidente. Em março de 1976, na sequência do golpe de Estado perpetrado pelas Forças Armadas que derrubou o governo de Isabelita Perón, uma junta com os comandantes das três instituições militares foi formada para “governar” o país. A Argentina vivia um período sangrento de enfrentamento político-ideológico e um mecanismo implantado um ano antes, ainda na democracia, chamado de “Decreto de Aniquilação”, vinha dando poder para os militares e órgãos de segurança, aliados a grupos paramilitares de extrema direita, promoverem uma verdadeira carnificina contra organizações de esquerda, que, a bem da verdade, também já vinham tocando o terror no país.

Formada pelo general Jorge Rafael Videla, pelo almirante Emilio Eduardo Massera e pelo brigadeiro Orlando Ramón Agosti, e liderada pelo primeiro, a junta rapidamente preocupou-se em dar um verniz democrático aos desmandos e à hecatombe que sobreviria. A primeira medida foi batizar o novo “governo”, que na verdade era um novo “regime”. Videla anuncia ao mundo o momento histórico da Argentina, o início do “Processo de Reorganização Nacional”, uma expressão rebuscada e com frieza institucional que passará a ser usada para nomear um genocídio que levou ao assassinato e à desaparição forçada de dezenas de milhares de pessoas, incluído aí mulheres, grávidas, idosos e crianças, para além dos raptos de mais de 500 bebês recém-nascidos cujas mães eram mortas com métodos de tortura logo após o parto.

Milei quer um “Processo de Reorganização Nacional” para chamar de seu e não demorou nadinha para anunciar suas “Leis de Base e Pontos de Partida a Liberdade dos Argentinos”.

Só que no horizonte do novo presidente argentino está novamente um verso de Cazuza, da mesma música, posicionado logo depois do outro já referido. “Eu vejo um museu de grandes novidades”.

Num exercício banal de imaginação, é possível prever uma galeria pública onde se expõe o passado da República Argentina, com todos os seus capítulos, e ver Milei na prisão. E ele estará lá por uma “novidade”.

Nos primeiros atos de repressão das forças de segurança argentinas contra manifestantes que tomaram as ruas do país nesses dias iniciais de governo “libertário”, a “vontade” dos agentes envolvidos nas ações não era algo que se possa classificar como “entusiasmada”. A explicação para isso consiste numa simplória frase habitual do vocabulário português do Brasil: ninguém é besta.

Se lembrarmos do 7 de setembro de 2021 por aqui, quando Jair Bolsonaro fez dois atos públicos patéticos e de forma irascível, em Brasília e em São Paulo, inclusive xingando o ministro Alexandre de Moraes, sinalizando de maneira inequívoca que pretendia sequestrar o Brasil e impor uma ditadura, vamos resgatar um fato que passou quase despercebido.

Dias antes, em São Paulo, um coronel da PM paulista soltara impropérios a favor dos rompantes ditatoriais do então presidente e conclamou seus colegas de farda, de todo o país, a embarcarem na intentona golpista. Àquela altura, todos os brasileiros que acompanhavam o conturbado momento político nacional receavam a entrada dos PMs na canja golpista de Bolsonaro, que desde o início de seu mandato deu status de “cidadãos de primeira classe” a esses profissionais, acima das leis e acima de todos os outros cidadãos. No entanto, entrou em cena o então governador João Doria, de São Paulo, que determinou imediatamente o afastamento do oficial superior e ameaçou com cadeia aqueles militares estaduais que se envolvessem na empreitada bolsonarista.

Incrivelmente, o protagonismo dos policiais militares de todo o Brasil desapareceu a partir desse momento e eles passaram a ter um papel secundário nos eventos golpistas que se desenrolariam no país no resto do mandato do presidente de extrema direita. Foi o caso de pôr medo nos PMs, já que, nos dias atuais, com as redes sociais, a internet e outros recursos, a maioria deles percebeu que o fracasso numa tentativa de golpe resultaria em cadeira brava para cima dos insurgentes, com a clara e possível hipótese de perderem suas carreiras e salários. Isso se confirmou, em alguma medida, se olharmos para o que aconteceu com os oficiais da PM do Distrito Federal que se envolveram no 8 de janeiro.

Lá na Argentina, a sensação é a mesma. Aliás, ela deve ser até maior. Nenhum país no mundo condenou e colocou na cadeia tantos repressores quanto a Argentina. Até hoje, homens já muito idosos, seguem no cárcere cumprindo sentenças longas, muitas delas de prisão perpétua, por crimes contra a humanidade. O próprio Videla morreu na cadeia, como um rato, jogado no canto da cela, entalado entre a parede e o vaso sanitário, com as costelas quebradas e uma hemorragia no pulmão, resultados de uma queda que sofrera na madrugada.

Pois bem, se Milei quiser um espacinho na galeria dos tiranos, o presente, o futuro, as redes sociais e a cultura democrática argentina estão prontos para dar-lhe. Só basta seguir em frente com duas intenções. Em tempo, alguém precisa dizer a Javier Milei que o tempo não para.