MODA E POLÍTICA

Lenço Árabe, símbolo da luta pela autodeterminação palestina

Considerado a bandeira não oficial da Palestina, o keffiyeh se transformou em ícone da resistência anti-colonial e acabou usurpado pela indústria da moda e pela cultura pop

Créditos: Flickr (Mhamad Kleit) - Mulheres usando a Kaffiya palestina clamam por uma Palestina livre
Escrito en OPINIÃO el

O keffiyeh, um lenço tradicionalmente usado no mundo árabe, já esteve sobre os ombros de figuras emblemáticas como Nelson Mandela, Madonna e Fidel Castro. 

Como essa peça de vestuário se tornou um símbolo tão forte da luta palestina pela autodeterminação?

Frequentemente chamado de bandeira não oficial da Palestina, especialmente durante o período de proibição da bandeira oficial palestina (1967-1993), o keffiyeh tem suas raízes em Kufa, uma cidade do Iraque. O nome keffiyeh se traduz como "relacionado com Kufa", sugerindo sua origem na região.

Na Palestina, o keffiyeh era um pano branco liso, utilizado por agricultores e beduínos (nômades) masculinos como um acessório prático para proteção contra o sol, o frio, a poeira e a areia. 

Allan Cash - Agricultor palestino 

Em contraste, os palestinos urbanos preferiam usar o tarboush turco vermelho, também conhecido como fez (pequeno chapéu de feltro ou pano usado em conjunto com um turbante).  

Wikimedia Commons - Tarboush usado por palestinos urbanos

Com o tempo, o keffiyeh evoluiu de um item de vestuário funcional para um poderoso símbolo cultural e político.

De vestuário tradicional a símbolo de resistência palestina

Na década de 1930, o keffiyeh emergiu como um símbolo poderoso de resistência política na Palestina, unificando palestinos de diversas origens na luta contra o domínio colonial britânico. 

Os fedayeen, combatentes pela liberdade do meio rural, começaram a usar o keffiyeh durante ataques contra as forças britânicas, tornando-se um distintivo facilmente reconhecível de sua causa.

O uso do lenço uniu campesinato e burguesia na resistência à ocupação e ajudou a costurar um senso de nação e a eliminar marcadores de classe.

À medida que a ocupação e a expropriação de terras pelos britânicos avançavam na Palestina, o lenço acumulava importância cultural e política como símbolo de resistência contra o colonialismo. 

O keffiyeh, em particular, reforçou a ligação com a terra palestina e o Mar Mediterrâneo, e passou a refletir o impacto da ocupação na identidade coletiva do povo palestino.

Resistência política

Wikimedia Commons - Yasser Arafat

O lenço tradicional se transformou em um emblema de resistência política do movimento palestino na década de 1960, principalmente graças ao seu uso por figuras revolucionárias como Yasser Arafat, presidente da Organização para a Libertação da Palestina (OLP)

Outra personagem que ajudou a projetar a imagem do keffiyeh como símbolo de solidariedade palestina foi a ativista Leila Khaled, conhecida por sequestrar um avião.

Revolutionary Lives - Leila Khaled

Em 1948, aos quatro anos de idade, Leila foi forçada a deixar a Palestina durante a Nakba, o êxodo imposto ao povo palestino pelos colonialistas sionistas, e fugiu para o Líbano com sua família. 

Aos 15 anos de idade Leila se juntou ao Movimento Nacionalista Árabe e mais tarde se tornou membro da Frente Popular para a Libertação da Palestina. 

Tornou-se a primeira mulher a sequestrar um avião em 1969, ao confiscar o voo 840 da TWA, que ia de Roma a Tel Aviv. Em setembro de 1970, sua segunda tentativa de reter outra aeronave, que fazia o voo 219 da El Al, que ia de Amsterdã para Nova York, falhou, e ela foi presa na Grã-Bretanha. 

Mais tarde, ela foi libertada em troca de reféns. Ela publicou uma autobiografia em 1973 narrando suas experiências como revolucionária e continua sendo um ícone da resistência palestina até hoje.

A imagem de Leila com um keffiyeh e uma AK-47 contribuiu para a percepção do lenço como um sinal de solidariedade palestina e um objeto sem gênero.

O uso do keffiyeh por mulheres como ela transformou o lenço de um item prático masculino para um símbolo de resistência e inspiração.

Estilo revolucionário

Figuras revolucionárias como Fidel Castro e Nelson Mandela também adotaram o keffiyeh e reforçaram o seu status como símbolo do anti-imperialismo e da política de esquerda. 

Cuba en Resumen - Fidel Castro
Flickr (reb3lz) - Nelson Mandela

Mandela, em particular, destacou a ligação entre a luta dos palestinos e a luta anti-apartheid na África do Sul.

Nos anos 1970 e 1980, o keffiyeh evoluiu de um símbolo de solidariedade palestina para um ícone do liberalismo e sentimento anti-autoritário, adotado por artistas como Madonna para provocação. 

Com o tempo, incorporou-se à moda popular, usado por celebridades como Melanie Mayron, Sandra Bullock, e até em séries influentes como "Sex and the City".

Na década de 2000, o keffiyeh continuou a ser um acessório de moda, com interpretações controversas como as de Raf Simons em sua coleção para outono de 2001/2002 "Riot Riot Riot", rotulada como "terrorista chique" pela indústria da moda. 

Grailed -  Coleção de Raf Simons

O lenço tornou-se onipresente no cenário "hipster", dissociando-se completamente de suas raízes revolucionárias, com figuras como Kirsten Dunst e David Beckham adotando o estilo.

Divulgação - Balenciaga e Isabel Marant

A coleção "viajante" outono 2007 de Nicolas Ghesquière para Balenciaga e a coleção primavera 2008 de Isabel Marant com estilos militares consolidaram o keffiyeh como um acessório de moda desejado, destacando a evolução do lenço de um símbolo de luta.

Ícone de moda controverso

Ao ser transformado em um acessório de moda, o simbolismo do keffiyeh relacionado à resistência palestina foi esvaziado pelas sociedades ocidentais. 

Nos mercados de Londres e nas lojas de fast fashion como a Urban Outfitters, o lenço tornou-se acessível em uma variedade de cores, distanciando-se de suas raízes políticas. 

Captura de tela Urban Outfitters

A comercialização do keffiyeh como um "lenço anti-guerra" pela Urban Outfitters gerou polêmica, culminando na sua retirada após críticas da Stand With Us, uma organização sionista.

Durante a segunda intifada, iniciada em 2000, muitos no Ocidente usavam o keffiyeh sem conhecer seu significado político. A percepção do lenço como um item de moda prevalecia entre muitos consumidores, com pouca consciência de seu significado político.

Em 2008, a popularidade do keffiyeh levantou controvérsias, especialmente quando a comentarista política conservadora Michelle Malkin criticou a utilização do lenço por Rachael Ray em um anúncio da Dunkin' Donuts, referindo-se a ele como "alta-costura de ódio". 

Reprodução YouTube

Em Berlim, a proibição do uso do keffiyeh em escolas foi implementada, considerando-o um símbolo político controverso. Nos Estados Unidos, uma estudante palestina-americana da Universidade de Columbia relatou ter sido confrontada no campus por usar o keffiyeh, indicando o quão polarizado o símbolo se tornou.

Colonização, neoliberalismo e fast fashion 

Durante a Primeira Guerra Mundial, a Inglaterra e a França partilharam grande parte do Oriente Médio através do acordo secreto de Sykes-Picot, que, em 1916, estabeleceu as fronteiras da região. A Cisjordânia ficou com a Inglaterra.

Wikimedia Commons - Partilha imperialista no Oriente Médio

Os britânicos, para administrar o território ocupado, formaram um exército conhecido como Legião Árabe. Em 1920, uma fábrica em Manchester, de propriedade de um sírio, criou os lenços para os soldados recém-recrutados. Assim, o keffiyeh foi introduzido na produção industrial e passou a apresentar novos designs.

colaimages - Legião Árabe

Posteriormente, o keffiyeh produzido em Manchester começou a ser usado por todas as forças britânicas na área, incluindo a polícia palestina e os soldados de fronteira.

De 1936 a 1939, antes do estabelecimento do Estado de Israel, o keffiyeh emergiu como um emblema do movimento de resistência palestino.

Os palestinos se opunham tanto aos britânicos, que administravam a região, quanto aos grupos sionistas judeus. Jovens rebeldes, procurando evitar a detenção pelas forças policiais, usavam o keffiyeh para cobrir seus rostos.

À medida que se transformava em uma peça de moda no Ocidente, nos anos 1980 e 1990, nascia também o neoliberalismo e o fast fashion. A popularidade do lenço árabe invadiu vitrines de lojas e bancas de camelôs e feiras mundo ocidental afora.

Kufya a última fábrica autência de keffiyeh 

O resultado é que resta apenas uma fábrica autêntica em funcionamento na Palestina. A Kufya, localizada em Hebron, na Cisjordânia, enfrenta graves desafios logísticos para continuar em operação com a ocupação do Estado de Israel desde o ataque do Hamas de 7 de outubro deste ano. 

Sem o controle palestino sobre as próprias fronteiras, a capacidade da fábrica de importar matérias-primas e exportar keffiyehs depende fortemente dos postos de controle de fronteira israelenses, que frequentemente levam a atrasos e aumento de custos.

Os ataques incessantes das Forças de Defesa de Israel na região aumentaram a demanda crescente por produtos autênticos, o que acena com a possibilidade de reviver a indústria local. Hoje, a maioria dos keffiyehs é produzida na China.