Um vídeo que mostra Dilma Rousseff dando uma invertida em uma mulher que tentou a intimidar em um avião, questionando o fato da ex-presidenta estar na "primeira classe" do voo, viralizou nas redes sociais nesta quarta-feira (13).
A gravação mostra Dilma conversando amigavelmente com uma passageira quando é abordada por uma terceira mulher, que pergunta de forma ácida: "Primeira classe?!"
Atualmente no comando do Novo Banco do Desenvolvimento (NDB), o chamado Banco dos BRICS, sediado em Xangai, na China, Dilma responde prontamente, sem se furtar:
"Lógico, querida. Eu sou presidente de banco, querida. Ou você acha que presidente de banco viaja onde?".
O vídeo ganhou destaque nas redes sociais após a influenciadora de extrema direita Renata Barreto, que se autodenomina economista e é admirada por bolsonaristas, compartilhá-lo. Sua intenção ao divulgar a cena de Dilma era retratar a ex-presidenta como uma figura arrogante e expor o que seu campo político - a direita - considera ser uma 'hipocrisia' da esquerda. De acordo com esse pensamento, a esquerda faria discursos em defesa dos mais pobres, enquanto seus representantes desfrutariam dos espaços reservados aos mais ricos.
Outra figura da extrema direita que compartilhou o vídeo foi o ex-procurador Deltan Dallagnol, que teve uma breve carreira de deputado e foi cassado por unanimidade pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O "xerife" da Lava Jato, como era conhecido, e que já defendeu a submissão da mulher ao homem, também procurou apontar suposta hipocrisia da esquerda ao divulgar as imagens.
"Enquanto Lula te dá lição de moral e diz que a classe média ostenta demais no Brasil, Dilma luxa com o dinheiro do povo e viaja de primeira classe porque, segundo ela mesma, ela é 'presidente de banco, querida'. O que você acha desse vídeo?", escreveu.
Até aí, nada de novo no front. Trata-se do pensamento raso e comum da direita que insiste na ideia de que a esquerda prega a pobreza. O efeito da postagem do vídeo de Dilma, entretanto, foi o contrário: a imensa maioria dos compartilhamentos são de pessoas elogiando a conduta altiva da ex-presidenta da República.
Ao tentar apontar suposta hipocrisia da esquerda com o vídeo, a direita reproduz a mesma retórica de conceitos falaciosos e já um tanto quanto batidos, como o do "comunista de iPhone" ou da "esquerda caviar" - termos de efeito utilizados para se referir àqueles que se colocam como pessoas de esquerda mas que, na verdade, gostam daquilo que é "gerado" pelo capitalismo.
A hipocrisia, contudo, está exatamente neste tipo de discurso. Nem o marxismo, nem o leninismo, comunismo ou socialismo pregou, em algum momento, que as pessoas devam ser pobres ou que não possam usufruir de produtos, bens, espaços ou serviços de qualidade. Pelo contrário. Uma das principais máximas dos pensadores de esquerda é de que a riqueza deve ser acessada por todos. E não apenas por alguns, como sugere a direita, a extrema direita e suas correntes, entre elas o neoliberalismo.
Um dos grandes fetiches de parte da classe média brasileira que se enxergar como "elite" não é exatamente ter mais, mas ter exclusividade. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva já evidenciou essa teoria em inúmeras ocasiões. "As pessoas se incomodam com o pobre tendo carro ou viajando de avião".
Trata-se de ódio de classe, como bem definiu o economista André Roncaglia ao repercutir as reações ao vídeo de Dilma Rousseff no avião.
O deboche ao encontrar a presidenta de um banco multilateral na 1a. classe de um voo revela o elitismo ressentido da extrema-direita. O anti-petismo se converteu em um 'racismo político', que nega a seus inimigos legitimidade e acesso aos espaços de poder. Puro ódio de classe.
Certa vez, em artigo, a comunista Manuela d'Ávila desmontou a retórica daqueles que utilizam os termos "comunista de iPhone" ou "esquerda caviar" com o mesmo objetivo de depreciar a esquerda, tal como tentaram fazer com Dilma voando na classe executiva.
Escreveu a ex-deputada:
"Comunista de iPhone: Nunca entendi qual contradição que veem entre alguém ser comunista e ter um celular. Creio que muitos desconhecem que, quando existia, a União Soviética sempre desenvolveu muitas tecnologias. O fato é que o socialismo não defende a negação da tecnologia. Ao contrário, defendemos justamente que, pela humanidade estar tão desenvolvida tecnologicamente, podemos viver um mundo muito mais justo para todos".
"Esquerda caviar: Esse termo usado por alguns conservadores tem origem no termo francês Gauche caviar. Como diria Zeca Pagodinho, 'eu não vi, não comi, eu só ouço falar'. Em síntese, somos 'caviar' porque gostamos do bom. Não entendem que, justamente, queremos que todos tenham acesso à riqueza da humanidade? Acho que eles nos confundem com os franciscanos que fazem voto de pobreza"
O fato é que, para manter seus privilégios, as lideranças da direita e extrema direita criam ilusões que são facilmente aceitas por seus fanáticos, que se calam para um ex-presidente - no caso Jair Bolsonaro - que tentou roubar joias para vender e que se esbaldou com cartão corporativo em hotéis de luxo simplesmente porque ele tira fotos comendo frango assado com farofa, se fazendo de humilde, e enche os pulmões para criticar uma mulher de esquerda que hoje preside um banco e ocupa espaço de poder.
Lula, em 2021, ao ser entrevistado no podcast PodPah, disse que passou fome na infância, na adolescência e até no início da vida adulta pouco antes de ser perguntado por um dos apresentadores se "pobre pode comer camarão". A pergunta fez referência à "polêmica" instaurada à época por bolsonaristas diante do fato de que foi servido camarão em um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) durante exibição do filme "Marighella", de Wagner Moura. Para apoiadores de Bolsonaro, seria "incoerência" pessoas pobres servirem e comerem camarão.
A resposta do presidente se encaixa perfeitamente na discussão sobre o "comunista de iPhone":
"Pode e deve. Até porque é ele quem pega. Pega camarão, produz carro. O pobre tem direito àquilo que produz".
Na verdade, o que Lula fez foi uma releitura da frase do teórico alemão socialista Ferdinand Lassalle que muitas vezes é atribuída a Karl Marx e que representa uma máxima na esquerda mundial:
"Se a classe operária tudo produz, a ela tudo pertence".