MODA E POLÍTICA

Cristina Kirchner: afrontosa e de vermelho

CFK, agora ex-vice presidenta da Argentina, não levou desaforo das vaias dos apoiadores do ultraliberal e extremista de direita Javier Milei e tascou o dedo médio para a turba

Créditos: Reprodução YouTube Casa Rosada
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Vestida totalmente de vermelho, Cristina Fernández de Kirchner, conhecida pelos hermanos pela sigla das iniciais do seu nome, CFK, no último ato de vice-presidenta da Argentina e presidenta do Senado, abriu a cerimônia que deu posse a Javier Milei como o novo ocupante da Casa Rosada até 2027.

Ao chegar à sede do Congresso da Argentina para solenidade, CFK foi vaiada por apoiadores do novo presidente. Ela não deixou barato: respondeu a turba mostrando o dedo do meio.

O estilo escolhido pela líder mais popular do campo de esquerda argentina é conhecido como color block (bloco de cor, em tradução livre). CFK escolheu pantalonas (calças com pernas largas e volumosas) e blusa marcadas por um cinto. Por cima, um quimono do mesmo tecido das outras peças do conjunto, aparentemente de seda, mas com brocados (decoração em relevo), e de comprimento longo.

Alusão à 'ArgenChina'

Para bom entendedor, pesponto vira uma prega e os chineses certamente gostaram da alusão à origem desse tecido nobre e reluzente. A China é o berço do cultivo do bicho-da-seda desde o século IX a.C e também da técnica milenar de transformar o fio do inseto que cresce em amoreiras numa das fibras mais nobres da indústria da moda.

A escolha da cor vermelha, que remete às esquerdas e às revoluções populares, e a opção pelo têxtil nascido na China emitem um forte sinal de amizade para Pequim. Principalmente depois do tom beligerante usado por Milei durante a campanha contra a potência asiática e seu sistema de governo.

Embora o novo presidente argentino tenha maneirado os ataques contra Pequim depois de eleito, ao menos no protocolo diplomático, a relação comercial entre China e Argentina tende a esfriar neste novo governo. 

Atualmente, a China é o segundo principal parceiro comercial da Argentina, depois do Brasil. Em 2022, inclusive, Buenos Aires superou Brasília como destino de investimentos de Pequim. 

Desde o ano passado, os argentinos fazem parte da Iniciativa Cinturão e Rota, a Nova Rota da Seda, projeto desenvolvimentista chinês com ênfase em obras de infraestrutura. Foi a primeira grande economia da América Latina a aderir à iniciativa.

Com a chegada de Milei à Casa Rosada, a Argentina também deverá recusar o convite para participar do BRICS+.

Extrema direita de 'branco sujo'

Instagram @victoria.villarruel

Em contraste com o look vermelho total de CFK, a nova vice-presidenta argentina, Victoria Villarruel, optou por um terninho off-white (uma espécie de branco sujo, que remete ao tom de algodão cru). 

A cor e as peças escolhidas pela ultradireitista são uma flagrante contradição do próprio discurso proferido por ela. O uso de terno branco é associado ao movimento sufragista, a luta pelo direito das mulheres ao voto, no século XX. Uma conquista das feministas. Mas Victoria se autodenomina uma antifeminista.

A impressão que fica é que a substituta de Cristina na presidência do Senado argentino queira amenizar a origem da família, formada por militares argentinos; e seu histórico de definir a época da ditadura militar no país, que durou entre 1976 e 1983, como uma "guerra" contra o comunismo.

O branco puro, que pelo visto Victória não teve a ousadia de trajar ao optar pelo off-white, é a cor dos lenços usados pelas Mães da Praça de Maio. A peça amarrada nas cabeças dessas mulheres remete às fraldas dos filhos e filhas assassinados ou desaparecidos durante o terrorismo de Estado da ditadura militar que deixou mais de 30 mil vítimas, mas que a nova vice-presidenta tenta negar que tenha ocorrido.

Victória é filha do tenente-coronel do Exército Eduardo Villarruel, veterano da Guerra das Malvinas, contra o Reino Unido, em 1982. O avô dela é o contra-almirante Laurio Hedelvio Destéfani, da Marinha.

A posição da nova vice-presidenta vai contra mais de mil condenações judiciais por crime contra a Humanidade impostas a militares do período da ditadura argentina. Ela tem planos de lançar uma auditoria para reverter as indenizações pagas pelo Estado argentino às vítimas da ditadura militar.

Reprodução YouTube Casa Rosada

Quem também optou por um terno off-white foi a irmã do novo presidente, Karina Milei, figura-chave do movimento que elegeu o ultraliberal. Discreta, a relações públicas e artista plástica de 51 anos, desfilou em carro aberto ao lado do irmão.

Reprodução Instagram @michelle.bolsonaro

Já a ex-primeira-dama do Brasil, Michelle Bolsonaro, não se furtou em usar branco puro para a posse do extremista de direita e amigão do seu marido, o ex-presidente inelegível Jair Bolsonaro. Com direito a spoiller para a decoração natalina. 

O estilo de Cristina

Ao longo de sua vida pública, Cristina mostrou que a moda pode ser uma poderosa ferramenta de comunicação e usa como poucas suas roupas como forma de expressar sua personalidade política. Como ao conduzir o início da posse do ultradireitista Milei vestida de vermelho, a cor da esquerda.

Desde seus primeiros dias como deputada da província de Santa Cruz até seu papel como primeira-dama e, posteriormente, como presidenta da Argentina, CFK sempre mostrou personalidade no ato de vestir-se. 

Inicialmente era vista em um estilo casual de jeans e suéteres, mas aprendeu a usar as roupas com estratégia, principalmente em eventos internacionais. Nunca se afastou doS gostos da mulher argentina média: preferência pela cor preta, maquiagem teatral, abundantes acessórios.

Quando o marido Néstor Kirchner morreu, no dia 27 de outubro de 2010, Cristina usou preto durante 1.134 dias. Ela vestiu branco pela primeira vez depois de ter ficado viúva no dia 4 de dezembro de 2013, quando encerrou o rígido protocolo de luto.

O guarda-roupas de Cristina mescla sofisticação e personalidade, com peças de marcas internacionais de alto luxo, como a italiana Prada, e de designs argentinos, como Susana Ortíz, Pablo Ramírez e Marcelo Senra.

As roupas que ela veste, assim como de toda mulher que ingressa na vida pública, são tema constante de debates. Neste dia que nos remete à tristeza de um tango argentino, a cor vermelha usada para ela na posse do adversário político, apesar de não esquecida e muito criticada pelos seus detratores, acabou ofuscada pelo gesto corajoso às vaias que recebeu dos minions argentinos.

Cristina, assim como seu guarda-roupas, jamais passará desapercebida.