Neste sábado (7), tivemos um novo capítulo de uma velha história. O conflito entre Hamas e Israel é somente mais uma etapa da complexa e traumática relação entre árabes e judeus, ou melhor, entre israelenses e palestinos, na região da Palestina.
Na grande imprensa brasileira, a narrativa predominante é a de que, “do nada”, “terroristas radicais muçulmanos do Hamas” atacaram o Estado de Israel. Não houve contextualização histórica, nem análise geopolítica.
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O objetivo dessa armadilha discursiva é tentar direcionar a chamada opinião pública a acreditar que, nesse confronto, de um lado, há um Estado legítimo (Israel); e de outro lado, está um grupo de fanáticos religiosos (Hamas) cujas reivindicações são infundadas.
Nada mais distante da realidade. Como já bem dizia Malcolm X, “se você não cuidar, os jornais farão você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas, e amar as pessoas que estão oprimindo”.
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Preliminarmente, é importante frisar que as animosidades entre israelenses e palestinos não devem ser entendidas somente a partir das relações entre estes dois povos.
Por causa de sua localização geográfica estratégica, no cruzamento entre três continentes, e também por ser importante rota comercial terrestre e marítima, a região da Palestina foi, desde os primórdios da civilização, alvo da cobiça de inúmeros povos alhures.
A moderna divisão do território palestino é fruto do arbítrio das grandes potências imperialistas europeias e dos Estados Unidos. Isto é, os limites estabelecidos não somente na Palestina, mas em todo o Oriente Médio, foram executados sem levar em conta as diferenças culturais ali existentes.
Expulsos pelos romanos da região onde hoje é a Palestina, entre os anos de 70 e 135 d.C., os judeus vagaram pela Europa, nos séculos seguintes, sendo vítimas de preconceitos e perseguições.
Na segunda metade do século XIX, surgiu a ideia da formação de um Estado-Nacional Judaico na Palestina, conhecido como Movimento Sionista. A partir de então, grandes fluxos migratórios de judeus seguiram em direção à “Terra Prometida”, há séculos ocupada pelos árabes palestinos. Com o final da Primeira Guerra Mundial, após o domínio turco-otomano, a Palestina passou a ser possessão da Grã-Bretanha em 1918.
O clima de comoção global após a revelação das atrocidades cometidas pelos nazistas ao povo judeu (Holocausto) ensejou a pressão internacional para a criação de um Estado onde os judeus pudessem viver livres de perseguições.
Incapazes de resolver os conflitos de interesses das comunidades árabes e judaicas na Palestina, os britânicos transferiram o problema para a ONU. Então, em 1947, esta instituição internacional, sob o comando do presidente estadunidense, Harry Truman, propôs a partilha da Palestina em dois estados: Israel (Estado Judaico) e Palestina (Estado Árabe). Jerusalém, por sua importância histórica e religiosa para cristãos, muçulmanos e judeus adquiriu status de área internacionalizada.
Em maio de 1948, antes da retirada completa das tropas internacionais, foi proclamada a independência de Israel. Consequentemente, os países árabes declaravam guerra ao recém-criado Estado judeu. Após o primeiro grande conflito contra os árabes, Israel amplia seu território para além das fronteiras promulgadas pela ONU.
Porções do território destinadas ao Estado palestino foram anexadas pelo Egito – Faixa de Gaza – e Jordânia – Cisjordânia (posteriormente, seriam invadidas e conquistadas por Israel).
Assim, antes mesmo de sua existência, o Estado palestino era riscado do mapa. O que se viu, desde então, foi um verdadeiro genocídio do povo palestino por parte do Estado de Israel.
No livro A Limpeza Étnica da Palestina, o historiador judeu Ilan Pappe apresenta detalhadamente uma sistemática política de violência contra os árabes, antes mesmo da oficialização do estado de Israel pelas Nações Unidas. “A ideia de eliminar a Palestina de sua população nativa, dos árabes, surgiu como um conceito claro nos anos 1930”, denunciou Pappe.
No entanto, a mesma mídia hegemônica que constantemente noticia “violações dos direitos humanos” em Cuba, Coreia do Norte, Irã ou Venezuela; “curiosamente” se cala diante das atrocidades do exército israelense contra a população palestina em Gaza e na Cisjordânia. Pelo contrário, Israel é representada positivamente nos noticiários internacionais, como “a única democracia do Oriente Médio”.
Não por acaso, os principais veículos de comunicação brasileiros recorrem ao clássico conceito weberiano de Estado como o detentor legítimo do monopólio da violência para qualificar as intervenções israelenses na Palestina como “ações preventivas” ou “retaliações” e, em contrapartida, definir a resistência palestina como “terrorismo”.
Ainda sobre essas manobras lexicais, organizações palestinas, como o Hamas, que não se curvam às políticas dos Estados Unidos e Israel, são tachadas de “radicais” ou “extremistas” e os grupos que aceitam os ditames de Washington e aliados, como o Fatah, são considerados “moderados”.
Ironicamente, nessa linha de raciocínio, um palestino, com um coquetel molotov, enfrentando o exército israelense, é “terrorista”. Já um ucraniano, na mesma situação, ao desafiar o exército russo, é “herói”. Dois pesos, duas medidas.
Como bem apontou o historiador Alexandre Caetano, em artigo publicado no jornal capixaba A Gazeta, nas imagens que vemos na televisão sobre os focos de tensão da geopolítica palestina, mortos do lado israelense são tratados com humanidade: eram pais, soldados, aposentados e famílias atingidos pelos foguetes do Hamas.
Por outro lado, as vítimas palestinas, a grande maioria civis, são simplesmente invisibilizadas. No máximo, pode-se ver mães desesperadas chorando pelos filhos mortos (mas parece até que todos eram culpados pela sua própria morte). Também não é raro que os palestinos sejam representados como “fanáticos”, carregando como troféus os corpos de algumas de suas vítimas de forma desordenada e em meio a urros e gritarias.
Além de esgotar o conflito entre Israel e Hamas em sua imediatidade (ou seja, ocultar seus condicionantes históricos), na grande imprensa, os antagonismos entre palestinos e israelenses são reduzidos a uma suposta rivalidade secular entre judaísmo e islamismo.
Mais uma vez, é preciso desconstruir as manipulações midiáticas. As escrituras islâmicas, a partir do conceito de “povos do Livro”, estipula que judeus e cristãos são seguidores de religiões autênticas e que devem ter suas crenças, rituais e costumes respeitados.
Não obstante, até pelo menos a segunda metade do século XIX, período em que se iniciou a migração em massa de judeus para a Palestina, incentivada pelas grandes potências europeias, os judeus que viviam na região conviveram pacificamente com os povos árabes ali estabelecidos. Isso significa que, antes do Movimento Sionista e do surgimento do Estado de Israel, árabes e judeus tinham uma convivência em geral amistosa.
Embora alguns judeus e muçulmanos ainda recorram a questões religiosas para legitimar a posse da Palestina, a principal causa para o confronto entre palestinos e israelenses é territorial. No entanto, estrategicamente, esta questão é ocultada nos noticiários, pois evidenciaria a culpa das grandes potências ocidentais, seja na arbitrariedade das fronteiras traçadas no Oriente Médio (sem levar em conta as diferenças culturais lá existentes), seja na própria criação do Estado de Israel.
Se, em outros focos de tensão global, podemos admitir que é complexo para as forças de esquerda e progressistas “escolherem um lado”; no caso palestino, não há dúvida. Como já dizia o anteriormente citado Malcolm X, não devemos confundir a reação do oprimido com a violência do opressor. A resistência do povo palestino ao Estado de Israel é parte indissociável da luta dos povos oprimidos do planeta contra o imperialismo.
* Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em Geografia pela Unicamp. Como autor, coautor ou organizador, possui catorze livros publicados, entre eles A ideologia dos noticiários internacionais (Editora CRV).