TENSÃO NO ORIENTE MÉDIO

Chamar ataque do Hamas a Israel de terrorismo é "completamente inapropriado", diz especialista

Em entrevista à Fórum, professor Reginaldo Nasser analisa operação militar do grupo islâmico-palestino em território israelense e alerta: "Resposta de Israel será violenta e pesadíssima"

Cartaz do Hamas em cidade palestina.Créditos: /Foto: Wikimedia Commons
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A tensão no Oriente Médio escalou neste sábado (6), quando o grupo político islâmico-palestino Hamas lançou um ataque surpresa e sem precedentes contra Israel. O comandante militar do movimento armado, Muhammad Al-Deif, convocou um "levante geral" contra Estado israelense, declarando que "esta é a hora de usar armas".

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Denominada "Tempestade Al-Aqsa", em referência a uma mesquita cujo acesso foi bloqueado por Israel, a investida é uma reação dos palestinos à opressão a que são submetidos pelos israelenses em meio à subtração de seu território. O Hamas exige libertação de seus presos políticos, o fim do cerco a Gaza e da ocupação. 

"O povo palestino e sua resistência estão a levar a cabo uma operação para defender o povo, a terra e os locais sagrados", diz nota divulgada pelo grupo. 

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O Hamas afirma ter disparado 5 mil mísseis e foguetes em cidades israelenses e entrou no país com centenas de homens armados via terra, água e ar, o que gerou uma resposta imediata das Forças de Defesa de Israel (IDF), que mobilizaram soldados e declararam "alerta de estado de guerra". Os confrontos já deixaram ao menos 900 mortos entre os dois lados do conflito, além de milhares de feridos. 

O conflito entre Israel e Palestina é uma saga de décadas. Sua forma moderna tem raízes em 1947, quando as Nações Unidas apresentaram uma proposta de criação de dois Estados, um judeu e outro árabe, na Palestina, que estava sob o mandato britânico na época. Em 1948, Israel foi oficialmente reconhecido como uma nação independente. No entanto, a história subsequente viu a gradual subtração de território palestino por ocupações israelenses ao longo dos anos, alimentando um ciclo de tensões e confrontos armados contínuos na região.

Para entender melhor os desdobramentos e implicações desta nova escalada do confronto, a reportagem da Fórum conversou com Reginaldo Nasser, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autor de "Novas perspectivas sobre os conflitos internacionais" (Unesp).

"Este ataque foi uma surpresa, visto que o Hamas normalmente lançava ações militares mais restritas, como o lançamento de mísseis. No entanto, desta vez, eles pegaram as forças israelenses de surpresa", afirma o professor ao se referir às infiltrações de homens armados do Hamas em território israelense que um dia já pertenceu aos palestinos.

Nasser também aponta para movimentos políticos que antecederam a escalada da tensão entre Palestina e Israel. 

"Há uma evolução recente na articulação dos Estados Unidos com Israel, envolvendo a Arábia Saudita. A Arábia Saudita, um dos mais importantes países do Oriente Médio, era um dos últimos que não havia aderido aos Acordos de Abraão, uma iniciativa dos Estados Unidos e Israel. Ou seja, com essa ação, vai ficar difícil essa articulação".

O professor continua, destacando as ações de Israel nas últimas semana que podem ter motivado o ataque do Hamas. 

"Israel anunciou formalmente a ocupação de territórios na Palestina, incluindo o Sul da Jordânia, território até então reconhecido como palestino. O objetivo político do ataque do Hamas parece ser impedir ou colocar em suspenso essas ações", explica.

Situação crítica de Gaza

"Gaza é uma das piores situações humanitárias no mundo. É cercada por terra, mar e ar, com 2 milhões de habitantes vivendo em uma área densamente povoada. A insegurança alimentar é extremamente alta, chegando a 75-80%. Há um controle rigoroso sobre a entrada de alimentos. Esta é uma situação deplorável", pontua Reginaldo Nasser

"Eu digo que é a única situação no mundo que, diante da guerra, você não tem a possibilidade de ter refugiado, porque não tem para onde ir. Quem não conflita, vai ter que ficar lá. Então, é uma situação desesperadora. Agora, sair fora do controle por parte da ação do Hamas é ruim", analisa ainda o especialista.

Sobre a provável resposta de Israel ao ataque do Hamas, Nasser alerta que a violência na região pode atingir níveis sem precedentes. 

"A reação de Israel será violenta, pesadíssima. Há muitos relatos de mortes civis, o que pode aumentar o apoio público a ações mais agressivas. Israel tem maioria no parlamento e é provável que a população apoie medidas mais duras em resposta a esse ataque".

Ação terrorista?

Sobre a classificação do Hamas como organização terrorista, Reginaldo Nasser opina que tal pecha, inclusive para a ação deste sábado, é "completamente inadequada", visto que o grupo, atualmente, é uma organização política que, na verdade, deflagrou uma operação militar contra o cerco ao seu território.

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Atualmente, o Hamas é considerado uma organização terrorista por países como Israel, Estados Unidos, Canadá, Japão, Reino Unido e todos os membros da União Europeia. No entanto, é importante notar que China, Rússia e Brasil não classificam o grupo como tal.

Outros países, como Noruega e Suíça, optam por não rotular o Hamas como uma organização terrorista, citando o princípio da neutralidade. Eles mantêm contatos com o grupo e frequentemente atuam como mediadores em conflitos envolvendo o Hamas.

Por outro lado, a Nova Zelândia faz uma distinção, classificando apenas o braço militar do Hamas, os Batalhões do Mártir Izz ad-Din al-Qassam, como uma organização terrorista.

Essa divergência internacional nas classificações reflete a complexidade das relações globais e os diferentes pontos de vista sobre as atividades e os objetivos do Hamas.

"Veja só. Os atores políticos podem mudar ao longo da história e podem assumir várias faces. O Hamas, no seu início, fez várias ações terroristas. Isso é inegável. Explodiu cafés, explodiu restaurantes e tudo. Já há um tempo, no entanto, o Hamas se configurou como entidade política. Tanto é que ele concorreu às eleições na Palestina e ganhou a eleição em Gaza com observador internacional. Quando um ator político que está no poder ganha a eleição e lança míssil a um outro país, você pode condenar a ação, você pode discordar, etc. Mas não é terrorismo — que é o que vários Estados no mundo têm feito. Já há muito tempo o Hamas não faz uma ação terrorista", opina Reginaldo Nasser

Segundo o professor de Relações Internacionais, o ataque do Hamas configurou uma "ação militar" que "justifica-se".

"Porque é uma resistência. Afinal de contas, o Hamas controla o território e o território é esse que está cercado. Há um modo de classificar terrorismo que se baseia nos atores. Por exemplo, dizer que Hezbollah é terrorismo. O Hezbollah fez terrorismo quando ele se iniciou. Há 30 anos o Hezbollah não faz terrorismo. O Hamas também, há muito tempo que não faz o atentado. Então, ao invés de julgar e avaliar os atos, eles [Israel, EUA e parte da imprensa] avaliam o ator de uma forma eterna".  

"Qualquer coisa que o Hamas fizer, ele é classificado como terrorista. Não importa. Mas não é verdade. Como eu disse, o Hamas, inclusive, tem representação política no exterior. É completamente inapropriado [classificar o ataque como terrorismo]. Mas a gente sabe o objetivo disso. É que os Estados Unidos e Israel, ao fazerem isso, justificam suas ações militares e econômicas", arremata Reginaldo Nasser.