Muitos esperávamos uma eleição em que seria surpreendente não haver nenhuma surpresa, como já tinha acontecido nas primárias abertas e obrigatórias do dia 13 de agosto. Naquela oportunidade, contra o que anunciavam as pesquisas de opinião, Javier Milei, candidato da ultra-direita, ficou no primeiro lugar, mesmo que a escassa distância do macrismo e do peronismo, que ocuparam, respectivamente, a segunda e a terceira posição. Para o primeiro turno, realizado ontem, a esmagadora maioria das pesquisas eleitorais previam um triunfo do Milei, com Massa - o candidato governista - brigando pela segunda posição. Nada disso aconteceu: mais uma vez houve uma grande surpresa. Frente aos grosseiros erros nos prognósticos, o grau de incerteza era muito grande e abriam-se múltiplas possibilidades: 1. triunfo de Milei por uma ampla diferença, resolvendo a eleição sem necessidade de um segundo turno, 2. um segundo turno entre a extrema-direita e a direita tradicional fascistizada, com o peronismo fora do páreo e 3. uma vitória de Sérgio Massa. Esta última foi, dos cenários surpreendentemente possíveis e imagináveis, a que finalmente ocorreu, abrindo-se um novo panorama para a etapa que resta do processo eleitoral.
No dia 19 de novembro acontecerá o segundo turno entre um Massa que deu a volta por cima e se mostra confiante na vitória e um Milei que viu frustradas suas desmesuradas expectativas e aparece como um dos grandes derrotados da eleição. Serão quatro intensas semanas de campanha, para selar nas urnas a derrota do neofascismo. A travessia até lá não será fácil para o peronismo, dada a trágica situação econômica e social em que se encontra o país, com 140% de inflação anual e mais de 40% da população abaixo da linha da pobreza. Resultados, estes, em grande medida, da nefasta herança macrista – exorbitante dívida contraída com o FMI – e dos graves erros de gestão cometidos pelo governo de Alberto Fernández – a começar pela péssima renegociação da dívida. Todavia, hoje um triunfo do Ministro da Fazenda Sergio Massa aparece como algo no terreno do possível e até provável.
O candidato anti “casta política” deixou de ser novidade e seu projeto de barbarização da vida social começou a assustar muita gente. Diferentemente do que aconteceu com Bolsonaro, na Argentina pareceria que não haveria necessidade de esperarmos o Milei chegar à presidência para descobrir o que isto significaria na vida quotidiana de milhões. Mesmo revoltados com a atual situação, graças a intensa militância nas ruas nestas últimas semanas, muitos passaram a perceber os riscos civilizatórios que significaria a chegada da ultra-direita ao governo, num país em que a memória histórica do que significou a ditadura ainda está muito presente. Daria a impressão de que as declarações mais recentes de Milei, de sua candidata a Vice e do seu círculo mais próximo em favor da livre compra-venda de órgãos, livre compra-venda de crianças, a comparação da atuação do Estado com a de um pedófilo numa escola infantil ou a proposta de romper relações diplomáticas com o Vaticano enquanto o Francisco for Papa têm despertado muitas dúvidas entre seus potenciais votantes. Tanto que, enquanto Massa angariou quase 3 milhões de votos adicionais aos que o peronismo tinha conquistado nas PASO, Milei só conseguiu somar novos 700.000.
A disputa, agora, será por ganhar a adesão dos votantes das terceiras forças: os quase 24% que apoiaram a candidatura macrista de Patrícia Bullrich, os quase 7% que optaram pelo governador de Córdoba, o peronista dissidente Juan Schiaretti, e os algo mais de 2% que votaram na Myriam Bregman, da Frente de Esquerda. É nesse universo que tanto Massa quanto Milei terão que buscar novos votos. E contrariamente ao que poderia se imaginar, os 24% de Bullrich não irão em bloco para Milei: uma proporção significativa desses votantes poderão acabar optando por Massa, especialmente aqueles que provêm da União Cívica Radical, até aqui força coadjuvante da coalizão macrista, hoje atravessada por profunda crise de identidade e de liderança. O partido Radical têm sido um dos alvos preferidos do Milei em sua prédica anti-casta, incluindo insultos de alto calibre contra o já falecido Raul Alfonsín, primeiro presidente da nova democracia e tido como uma das figuras mais respeitadas e admiradas desse partido centenário.
Parágrafo à parte merecem Cristina Kirchner e Axel Kicillof. Ambos, sem espaço para dúvidas, também estão entre os grandes vitoriosos da eleição. Cristina como grande arquiteta do triunfo, que soube dar um passo ao lado na exposição pública, mas que se manteve ativamente no seu papel de estrategista-chave no processo eleitoral. E Axel como o governador que, graças a uma muito digna gestão, soube revalidar seu diploma no Executivo da província mais importante da Argentina (quase 40% do eleitorado do país) com uma maciça votação e angariar assim milhões de adesões para a candidatura de Massa na disputa presidencial. Num país em que as províncias têm autonomia para definir seu próprio calendário eleitoral, Kicillof foi dos pouquíssimos governadores peronistas que optou por manter a eleição provincial na mesma data que a eleição nacional, o que garantiu a associação dos dois candidatos e atou a sorte eleitoral de ambos.