Os camponeses estão votando com os pés
Vladimir Ilitch Ulianov, aliás, Lenin, quando informado que os camponeses
estavam desertando em massa do Exército Czarista na Primeira Guerra Mundial.
Junho de 2013 ainda nos atormenta e angustia. A esquerda manteve a hegemonia nas ruas no Brasil, durante três décadas e meia, desde o final dos anos setenta. Perdeu esta supremacia nas jornadas de junho. Mas, isso não autoriza a conclusão de que as forças de direita, liberais ou extremistas, lideraram. Ninguém dirigiu. Junho foi acéfalo.
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Se em junho apareceu o que existe de mais generoso e solidário no coração da juventude, surgiu, também, o que existe de ingênuo e até reacionário. Como em todos os processos históricos, quando as mobilizações são ainda policlassistas, e o peso social da classe trabalhadora ainda não se impôs, não foi tudo progressivo. Provocadores embriagados de nacionalismo exaltado, embrulhados na bandeira nacional, atacaram as colunas da esquerda. Mas não devemos exagerar os episódios dramáticos de choques com quadrilhas de neofascistas que queriam derrubar as bandeiras vermelhas. Embora muito grave esta disputa esteve longe de ser o mais importante do que ocorreu em junho, ainda que tenha sido o mais triste.
Junho de 2013 foi uma desconcertante explosão de protesto e euforia. Em qualquer análise, respeitar o sentido das proporções é indispensável. Não devemos nos impressionar com o que aconteceu de singelo e irreverente, crédulo e confuso, perigoso e reacionário. Quando da interpretação de grandes acontecimentos existe sempre o duplo perigo de subestimação ou de sobre-estimação. O que aconteceu em junho de 2013 foi grande, e a avaliação de suas lições não pode ser tabu.
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Uma sequência de quatro protestos de rua contra o aumento das passagens de ônibus, em São Paulo, com alguns milhares de jovens, foi uma faísca. Reprimidos pela polícia com uma violência selvagem, detonaram uma explosão social surpreendente. Um conflito que parecia marginal deflagrou uma onda nacional de mobilizações que o país não conhecia desde o Fora Collor, vinte e um anos antes. A classe média se uniu à juventude estudantil e arrastou setores das camadas populares.
Aconteceu, no início, pela iniciativa do MPL (Movimento Passe Livre), um núcleo de ativistas de inspiração autonomista, sem que qualquer direção política mais importante estivesse comprometida com a convocação. Os próprios manifestantes declararam, espontaneamente, aos milhares, ao que vieram: “não é por centavos!”.
Nas jornadas de junho centenas de milhares de jovens invadiram as ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Na dimensão nacional algo próximo a dois milhões de pessoas saíram às ruas em quatrocentas cidades em poucas semanas. Essa onda se estendeu de variadas formas no segundo semestre. Por um lado, a campanha Aonde está Amarildo? comoveu o país. Por outro, grupos de black blocs, alguns com infiltrações policiais, multiplicaram ações simbólicas violentas. Mas a onda se esgotou em fevereiro de 2014, depois da morte trágica do cinegrafista da Band diante da Central do Brasil.
Prevalece ainda em uma parcela da esquerda a percepção de que é possível discernir uma causalidade entre Junho de 2013, e o golpe institucional que derrubou o governo Dilma Rousseff em 2016, e tudo que veio depois: a posse de Temer, o apogeu da operação Lava-Jato, a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro em 2018. Uma dinâmica de derrotas. Mas esta interpretação é unilateral. Afinal, quais foram as conexões entre junho de 2013 e o impeachment, lembrando que Dilma Rousseff venceu o segundo turno contra Aécio Neves no final de 2014?
Esta luta por transportes, educação e saúde pública gratuita e de qualidade chocou, frontalmente, com o PT de Fernando Haddad na prefeitura de São Paulo e o PSDB de Alckmin. Sérgio Cabral e Eduardo Paes do PMDB nos governos do Rio não foram poupados. Em Recife o PSB de Eduardo Campos foi, igualmente, atingido. Depois a avalanche de mobilizações se alastrou na forma de um tsunami nacional. Muitas cidades viram as maiores passeatas de sua história. Em não poucas delas, mobilizações maiores que as que conheceram quando do Fora Collor de 1992. Algumas até maiores do que as Diretas em 1984.
O apoio ao governo Dilma, que era amplamente majoritário – mais de 65% - em menos de um mês, passou a ser minoritário: menos de 30%. A força social de choque destas mobilizações deixou as instituições do Estado, por quase uma semana, semiparalisadas. A classe dominante se dividia entre os que exigiam mais repressão, e aqueles que temiam uma completa desmoralização política dos governos, caso a fúria policial descontrolada provocasse um ou mais mortos. O recuo no aumento das passagens não foi o bastante para retirar as massas das ruas durante alguns meses. Uma maioria dos setores médios deslocou-se para o apoio aos manifestantes.
Uma análise das razões desta explosão em Junho, e não antes nem depois, deve considerar muitos fatores. O aumento das tarifas de ônibus foi somente a centelha que acendeu a fogueira. Uma pesquisa do Ibope sobre as razões da participação nas manifestações revela que a grande maioria estava nas ruas em defesa de serviços públicos e gratuitos, e contra a corrupção. Assistimos a uma desconcertante explosão de protesto e euforia. Não devemos nos preocupar com o que vimos de singelo, irreverente e até um pouco crédulo.
As mobilizações de junho de 2013 foram, essencialmente, acéfalas. Foram, politicamente, caóticas, ambíguas, confusas. Mas tentar desqualificar o seu significado com a caracterização de que seriam somente a expressão do mal estar das classes médias urbanas mais escolarizadas e hostis ao PT, ou seja, reacionárias, demonstrou-se insustentável.
O sentido dominante das Jornadas de Junho, apesar de muito tumultuoso, foi mais complexo. A esmagadora maioria dos cartazes se restringia aos limites de reivindicações democráticas, mas eram progressivos: “se o povo acordar, eles não dormem! Não adianta atirar, as ideias são à prova de balas! Não é por centavos, é por direitos! Põe a tarifa na conta da Fifa! Verás que um filho teu não foge à luta! Se seu filho adoecer, leve-o ao estádio! Ô fardado, você também é explorado!”
Deslumbrar-se com a força das marchas, e desconhecer suas limitações seria um erro. Enxergar com ceticismo a dimensão destas três semanas de lutas, ou seja, perceber somente suas inconsistências, também. Há três respostas na esquerda brasileira para esta questão crucial. Qual delas se confirmou no “laboratório” da história? A saída do “labirinto” da situação reacionária em que ainda nos encontramos, depois de três anos e meio de governo Bolsonaro, depende, em alguma medida, de uma resposta correta.
A primeira resposta é aquela que vê nas mobilizações abertas por junho de 2013 a semente da saída às ruas da extrema-direita, e o momento da inversão desfavorável da relação social de forças. Atribui às jornadas de junho um sentido reacionário porque seria o início da ofensiva de uma “onda conservadora”, e sua direção não podia ser disputada pela esquerda. Junho de 2013 seria o “esquenta” das mobilizações dos “amarelinhos” em março/abril de 2015 e 2016, alguns milhões ecoando “nossa bandeira jamais será vermelha”.
A segunda é oposta pela raiz, porque identifica uma dinâmica revolucionária ininterrupta no processo aberto em junho de 2013. Diminui a natureza contraditória do impulso social, oculta a disputa que aconteceu nas ruas com as forças de direita, e desconhece que ocorreu uma derrota.
A terceira é a mais complexa, porque reconhece o caráter progressivo das reivindicações, ou a presença de sujeitos sociais oprimidos, mas constata, também, a presença de um núcleo reacionário com audiência de massas, e observa que a acefalia política deixou a dinâmica das mobilizações à deriva. Tudo estava em disputa.