Se a sorte das armas, a arrogância da vitória e as intrigas dinásticas levam a Alemanha a uma espoliação do território francês, diante dela só se abrirão dois caminhos: ou converter-se a todo custo em um instrumento aberto da expansão russa, ou, após breve trégua, preparar-se para outra guerra "defensiva", não uma dessas guerras "localizadas" de novo estilo, mas uma guerra de raças, uma guerra contra as raças latinas e eslavas coligadas.[1]
Karl Marx
A epígrafe de Marx revela como, no calor da guerra franco-prussiana de 1870/71, a I Internacional alertava os trabalhadores para o perigo inexorável de uma futura guerra mundial. A história confirmou, dramaticamente, este prognóstico. Vinte anos depois, surgiu uma corrente majoritária na II Internacional que não só apostava que a paz iria prevalecer, mas confiava que os regimes democráticos na França e Alemanha eram tão sólidos que justificavam uma estratégia de transição pacífica ao socialismo.
Refutando estes vaticínios, a primeira metade do século XX foi determinada por duas guerras mundiais e o surgimento do nazi-fascismo no intervalo entre elas. O único partido marxista que preservou a elaboração internacionalista de Marx foi o bolchevismo russo e foi, também, o único que liderou uma revolução vitoriosa. Paradoxal e, dialeticamente, foi a vitória militar da União Soviética contra o exército de Hitler que salvou os regimes democrático-liberais na Europa ocidental.
As definições da relação da tradição socialista inspirada no marxismo com a democracia tem, portanto, uma longa história, e seu berço foi a Alemanha. Ela é indivisível de uma apreciação sobre a época histórica e o destino do capitalismo.
Nas últimas três décadas de avanço da globalização não faltaram elaborações que flertaram com o legado de Bernstein sobre a democracia, e o conceito kautskista de ultraimperialismo. Esta ideia resumia a perspectiva de que os conflitos inter-imperialistas seriam improváveis. A guerra na Ucrânia demonstra que esta expectativa era errada. Noventa anos depois da morte de Bernstein, um ano antes dos nazistas tomarem o poder, suas ideias mais importantes sobre uma estratégia reformista exercem, também, um fascínio curioso e ingênuo sobre a esquerda brasileira.
Na última década do século XIX os partidos da Segunda Internacional avançavam, eleitoralmente, na Europa ocidental. O S.P.D. possuía dezenas de jornais, uma presença hegemônica nos sindicatos, e se apoiava em uma ampla rede de associações mutuarias, culturais, educativas e recreativas. Foi nesse marco histórico, um período de prosperidade do capitalismo e crescimento econômico, e consolidação de regimes democrático-liberais que se abriu o debate sobre a necessidade de uma estratégia reformista.
Bernstein era muito consciente da duplicidade de atitudes do partido: ainda ortodoxamente revolucionário na teoria e programa, mas, pragmaticamente, reformista na prática, aceitando o regime monárquico do Kaiser.
Nos congressos do SPD as teses teóricas de Bernstein eram condenadas, mas na vida de intervenção política, (em todas as esferas, sindical, eleitoral, parlamentar) eram cada vez mais poderosas as conclusões que resultavam do debate doutrinário que ele tinha provocado. Era também consciente das forças nas quais se apoiava, e da verdadeira dimensão de sua influência.
A chamada ala revisionista do SPD tinha quatro grandes componentes:
(a) a tendência politicista de Vollmar, influente dirigente na Baviera, precursor da votação dos orçamentos provinciais, e das coligações eleitorais com os partidos burgueses, defensor dos governos de coalisão à la Millerand e Jaurés;
(b) a tendência aparelhista de Auer, o secretário de organização do partido, na sua maioria quadros profissionalizados, ex-operários, preocupados com a política prática, atraída pelo empirismo, defensora acima de tudo da unidade do aparelho, conservadora do “método” do partido alemão, ou seja, da utilisação da legalidade a qualquer preço; (c) a tendência nacionalista, abertamente pró-imperialista, dirigida por Heine,defensora da militarização e das aventuras coloniais, entusiasmada com a potência exterior do Reich, e da conquista de um novo lugar para a “civilização alemã” no disputado mercado mundial;
(d) a última e mais importante componente era a tendência sindical, os dirigentes profissionais do aparelho sindical, que contribui com sua influência decisiva, para engrossar com os grandes batalhões da vanguarda organizada, as forças do reformismo, é movida por uma oposição aos princípios marxistas e pelo cepticismo, senão desconfiança e ódio à revolução, será ela que cumprirá o papel decisivo como pressão sobre a velha direção de Bebel e Kautsky, e finalmente levará o partido à capitulação.
Entre as ideias teóricas predominantes destacavam-se, na Internacional, a fórmula da dialética de derrotas parciais que preparam as condições para a vitória final, cunhada por Kautsky e, no SPD, a concepção de que o capitalismo, inexoravelmente, caminharia de crise em crise, para uma catástrofe inexorável.
Bernstein teve assim o mérito dos pioneiros, e foi o primeiro a se levantar contra esta avaliação que se reproduzia Congresso após Congresso, em uma referência ritual, mais como doutrina, do que como análise que orientava a ação. Partia da idéia de acumulação de forças gradual e ininterrupta do movimento operário, acumulação de organização, sindical e política, e também eleitoral.
Época progressiva, ausência de crises, nova estratégia de reformas no longo prazo. O tempo sempre foi a medida da estratégia. O partido alemão debatia sobre o tempo descontínuo e vertiginoso da crise ou o tempo longo e uniforme das reformas. Bernstein irá se deter na verificação histórica de algumas conclusões centrais do legado de Marx, e questioná-las para derrubar a hipótese estratégica da necessidade de uma revolução política-social. Um por um, os alicerces da teoria serão desafiados:
(a) primeiro, o sujeito social: enquanto para Marx existiria uma tendência à homogeneização e a um crescente fortalecimento do peso social do proletariado que, sob o impulso dos avanços da industrialização, elevaria o papel estratégico no interior da sociedade, e concentraria nas suas mãos uma capacidade crescente de paralisação dos setores vitais da vida econômico-social; já Bernstein opunha uma análise do proletariado (entendido como aqueles que vivem do seu trabalho e não de renda) como uma massa mais heterogênea que o peuple de 1789 (argumento posteriormente sempre revisitado pelo reformismo contemporâneo); insistiu que o nível de vida exerce uma influência maior do que a origem de classe na definição das inclinações políticas e da consciência de classe; finalmente, negou ao proletariado um protagonismo revolucionário, porque ainda não estaria maduro, nem social, nem política, nem moralmente para a conquista do poder.
(b) segundo, sobre a concepção de história, em particular o lugar da luta de classes. Onde Marx tinha afirmado a dialética entre as tarefas e os sujeitos sociais, e destacado a primazia dos segundos sobre as primeiras, Bernstein defendeu a centralidade dos meios sobre os fins, e da moral sobre a política. Disto resulta um curioso paradoxo: o apóstata que acusa Marx de resíduos de utopismo revolucionarista, que atribui à herança de hegelianismo (uma de suas cruzadas era contra a dialética) confessou, sem pudores, que os novos fundamentos do socialismo deveriam ser éticos e desvinculados de qualquer necessidade histórica.[2] Daí que a antinomia reforma e revolução surgisse quase nos termos de uma escolha voluntária, um dilema moral, em que os dois caminhos teriam vantagens e senões, sendo o primeiro mais conveniente, porque não só menos custoso, socialmente, como mais apropriado diante do progresso da civilização.
As formas políticas democráticas do Estado Moderno surgem assim como uma conquista da civilização e do peso social do proletariado, de sua luta sindical (EUA e Inglaterra) e políticas (Alemanha, França), e flexíveis e elásticas a ponto de permitir um avanço acumulativo de forças e conquistas crescentes. O Estado interpretado como instrumento do progresso, expressão de uma consciência, de uma identidade e de uma cultura nacional, aparelho que não deve ser deslocado, mas conquistado para ser utilizado a serviço dos interesses públicos.
Mas Bernstein não ignorava, nem diminuía a luta de classes. Reconhece não somente a sua existência como força motriz histórica, mas defende a sua legitimidade política: o que questionava era se a dinâmica do desenvolvimento capitalista exacerbaria os conflitos de classe, empurrando os trabalhadores para ações revolucionárias, ou se a sua integração social, expressão de suas vitórias na luta por reformas, não teria tornado, politicamente, desnecessária e, historicamente, superada a perspectiva da revolução política.
Mais do que a urgência de uma estratégia de ação, Bernstein assume a necessidade de um novo programa histórico, e defende a centralidade da democracia, como novo paradigma civilizatório dos socialistas. Sua originalidade histórica consiste justamente na elaboração de uma nova teoria política, da qual decorre uma nova estratégia de poder, que será um ponto de referência obrigatório em quase todas as controvérsias marxistas fundamentais do século XX: a teoria dos campos progressivos. Essa será a sua herança ideológica mais duradoura.
Em que consiste? Em uma formulação que nos é hoje muito familiar, mas cuja elaboração é de Bernstein de forma pioneira. Assim como julgava com extrema severidade a imaturidade do proletariado. e alimentava incontida esperança nas possibilidades de acordos com a burguesia liberal, com a qual propunha que os trabalhadores constituíssem uma frente, Bernstein considerava a aristocracia (os junkers) uma classe parasitária do Estado, que à frente da administração, do exército e da diplomacia, eram uma ameaça permanente às liberdades cívicas e à paz.
Os campos de classe como linha demarcatória e divisor de águas da interpretação da centralidade do conflito político na sociedade eram deslocados pela defesa da democracia: forma de um regime politico que corresponderia aos interesses do progresso da civilização. À renúncia a uma estratégia socialista correspondia outra: a defesa do campo progressivo da democracia com a burguesia liberal contra o campo reacionário dos junkers. A democracia como um meio e um fim.
O campo da democracia passava a ser pensado como sendo, estrategicamente, o campo dos trabalhadores. Tudo era uma questão de tempo, e poderia ser superado através de uma política de alianças. Nem os interesses nacionais alemães (os interesses do império germânico) eram incompatíveis com os interesses dos trabalhadores. Tampouco o mercado era visto como um obstáculo para a transição ao socialismo. Enfim, todas as dificuldades à construção de uma frente permanente e orgânica com a burguesia liberal eram relativizadas. O campo da democracia se impunha assim sobre os interesses de classe.
Esta teoria política dos campos progressivos tem como fundamento uma análise de época, da qual resulta um pensamento historicamente etapista, que será reivindicado pelos bernsteinianos na França: Tanto Millerand quanto Jaurés o invocarão para justificar a presença do partido operário, pela primeira vez, em um Governo de coalisão; também na Rússia, os mencheviques, que defenderão a colaboração da social democracia com a burguesia em uma frente contra a autocracia czarista; e desde então estará presente no centro da polêmica de estratégia, sempre que pela evolução das circunstâncias políticas, os conflitos vieram a assumir uma forma policlassista: o campo de Kerensky contra Kornilov em 17, o campo de Chiang Kai-shek contra a invasão japonesa, o campo da República na Espanha contra Franco, o campo dos aliados contra o nazi-fascismo, o campo da oposição burguesa contra a ditadura no Brasil, etc..
A tradição política marxista anterior não desconhecia, nem desprezava a existência de diferenças no interior das classes dominantes. É bem conhecida, por exemplo, a posição da social democracia alemã, e de Marx durante a guerra franco-prussiana de 1870, quando depositou apoio militar à resistência contra a invasão bonapartista.
Mas Marx nunca se considerou em um campo político com o Bismarck e o Kaiser contra a França, e quando o Conselho Geral da Internacional o encarregou de redigir os seus manifestos, Marx sublinhou as suas diferenças irreconciliáveis contra as ambições anexionistas na Alsácia e Lorena, além de alertar incansavelmente para o perigo de uma aliança com Czar, e para o perigo de uma nova guerra.[3]
O mesmo critério foi o de Lenin em uma frente militar com Kerensky contra Kornilov em agosto de 17: uma estrita unidade militar com o chefe do governo provisório contra a ameaça bonapartista, sem sacrificar a independência política dos trabalhadores. Em ambas as circunstâncias, nem Marx, nem Lenin buscaram uma frente com um campo progressivo, mas foram obrigados diante da pressão dos acontecimentos, a um alinhamento transitório e instável, imposto pelo confronto militar. Mas não defendiam uma frente política de colaboração de classes.
No entanto, o tema teórico é complexo. Talvez esteja entre os mais difíceis da teoria política do marxismo. Quando e em função de quais critérios em um confronto político ou militar entre facções burguesas, ou entre bandos de classes proprietárias enfrentados, o marxismo deve eleger um campo progressivo, mesmo nos limites de uma limitada unidade na ação, ou uma conjuntural resistência militar?
Por exemplo, estiveram certos os internacionalistas reunidos em Zimmerwald quando denunciaram o apoio dos partidos francês e alemão aos créditos de guerra, e recusaram-se ao alinhamento com qualquer do dois campos, porque ambos seriam regressivos? E simetricamente, na Segunda guerra mundial, não estiveram errados os marxistas que se recusaram, antes da invasão da URSS por Hitler, a uma frente militar contra o nazi-fascismo, que seria um campo progressivo, o campo do regime democrático contra o campo da barbárie?
Por último, merece ser examinada a concepção de Bernstein sobre necessidade histórica (e suas relações com a liberdade humana, expressão de uma vontade consciente, e com o acaso). Ele a renegava, e acusava o marxismo nesse terreno de ser um calvinismo sem deus, e sustentava, como já vimos, a necessidade de fundamentar um projeto socialista em um imperativo moral que deveria se expressar através do Direito, em uma evolução e aperfeiçoamento da democracia.
Insistia que os fins, ou seja, a perspectiva do poder, pouco lhe interessava, porque a época das revoluções tinha se encerrado para sempre nos países avançados com o triunfo da democracia (a defesa da via “inglesa”), e porque o mais importante eram os meios, isto é, a luta mais imediata pelas reivindicações imediatas. O resto... o resto eram resíduos blanquistas dos quais o jovem Marx nunca teria se desembaraçado.
O recurso polêmico não consegue esconder as “más” intenções de amálgama político. O que definiu historicamente o blanquismo não foi a defesa da revolução, mas a defesa do putch: uma operação militar de vanguarda que prescinde da participação e apoio político de massas.
Nesse sentido o erro teórico de Bernstein é mais sério do que o fato de Marx e Engels terem se equivocado em um vaticínio político. Marx de fato sempre foi muito cuidadoso em esboçar as linhas mais concretas do que seria um governo dos trabalhadores e a passagem ao socialismo. Identificou na Comuna a primeira realização histórica e fugaz de uma república operária, reconheceu nela a primeira forma da ditadura do proletariado, mas foi sempre prudente em relação às formas que poderia assumir um processo de transição, e seus pudores eram simétricos à ousadia dos primeiros pensadores da causa socialista que apresentavam utopias idiossincráticas e irreconciliáveis entre si.
Marx insistia na necessidade de um governo dos trabalhadores e de uma revolução política para conquista-lo, e pouco mais. A não ser indicações, como a critica aos proudonistas e blanquistas da Comuna que, no lugar de fazerem refém o arcebispo de Paris, deveriam ter se apropriado das reservas do Banco de França. Mas em geral sempre insistiu na ideia geral de que o socialismo seria a passagem do reino da necessidade para o da liberdade.[4]
Esta fórmula expressava condensadamente duas ideias: a superação da escassez pela abundância; e a superação das classes e do Estado e, portanto, também da política, como poder de administração das pessoas e dos bens. Em outras palavras, a indivisibilidade da igualdade e da liberdade, como o sentido último da causa socialista. Também nesse terreno, o socialismo moral e jurídico de Bernstein significava uma profunda ruptura, porque se fundamentava na defesa da fraternidade humana e na solidariedade, como valores constitutivos de uma ordem civilizatória superior.
A esquerda brasileira, depois do impeachment de 2016, da prisão de Lula e da eleição de Bolsonaro, acossada pelas ameças golpistas que cercam a campanha eleitoral de 2022, deve escolher entre a tradição de Marx ou a de Bernstein. Se tiver juízo, deveria ter menos confiança nos juramentos de lealdade à democracia que as lideranças burguesas nos brindam.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.
[1] MARX, Karl, Segundo Manifesto do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores sobre a guerra franco-prussiana, in Obras Escolhidas, São Paulo, Alfa-Omega, volume 2, p.60/1
[2] Bernstein é consciente de que a sua ruptura tem fundamentos metodológicos irreconciliaveis com o marxismo: “Os artigos de Rosa Luxemburgo também tiveram um sentido semelhante, que apesar de tudo, são os melhores que se escreveram contra mim, do ponto de vista metodológico, quando ela objetava que, segundo meu modo de pensar, o socialismo deixaria de ser uma necessidade histórica objetiva e adquirir um fundamento idealista. Embora o argumento apresente alguns tropeços lógicos no entanto, capta o cerne da questão na medida em que não só não faço depender, na realidade, a vitória do socialismo da sua "necessidade económica imanente", como também não considero possível ou necessário dar-lhe um meramente materialista.” (grifo nosso) (BERNSTEIN, Eduard. Las premisas del socialismo y las tareas de la socialdemocracia: problemas del socialismo; el revisionismo en la socialdemocracia. Trad. Irene del Carril e Alfonso García Ruiz. México, Siglo XXI, 1982. p.266)
[3]. Esta posição de Marx foi recordada pela maioria da bancada parlamentar do SPD para votar os créditos de guerra em 1914, como se Marx tivesse alguma vez aceito que os interesses da Alemanha se confundiam com os interesses da classe trabalhadora alemã de forma indissolúvel. Como se poderá confirmar nos fragmentos na sequência, os considerandos de Marx são muito mais complexos: “Se a classe operária alemã permite que a guerra atual perca o seu carácter estritamente defensivo e degenere em uma guerra contra o povo francês, o triunfo ou a derrota será sempre um desastre (...) (MARX, Karl. “Primeiro Manifesto do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores sobre a guerra franco-prussiana” In Obras Escolhidas. São Paulo, Alfa-Omega, volume 2, p.54) Mais claro ainda, neste outro fragmento, o critério de estrita unidade no campo militar, preservando a independência política, ou seja, delimitando-se do campo de Bismarck, e uma análise simplesmente visionária do perigo de uma política de anexações, que seria a semente de uma nova guerra, mas com um custo histórico muito superior. Infelizmente Marx estava certo. O cemitério de Verdun e seu meio milhão de sepulturas ficam na Alsácia: “Qualquer que seja o desenvolvimento da guerra de Luis Bonaparte com a Prússia, dobraram já em Paris os sinos pelo Segundo Império. Acabará como começou: como uma paródia. Mas náo esqueçamos que foram as classes dominantes da Europa que permitiram a Luis Bonaparte representar durante dezoito anos a farsa cruel do Império restaurado. Por parte da Alemanha, a guerra é uma guerra defensiva, porém quem colocou a Alemanha no transe de ter que defender-se? Quem permitiu a Luis Bonaparte desencadear a guerra contra ela? A Prússia! Foi Bismarck quem conspirou com o mesmíssimo Luis Bonaparte, com o fim de esmagar a oposição popular dentro de seu pais e anexar a Alemanha à dinastia dos Hohenzollern (...) A influência preponderante do czar na Europa tem raízes em sua tradicional influência sobre a Alemanha (...) Por acaso os patriotas teutôes crêem realmente que o melhor modo de garantir a liberdade e a paz na Alemanha é obrigar a França a lançar-se nos braços da Rússia? (grifo nosso) (MARX, Karl, Segundo Manifesto do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores sobre a guerra franco-prussiana, in Obras Escolhidas, São Paulo, Alfa-Omega, volume 2, p.60/1)
[4] Sobre este tema da necessidade e a sua relação com a igualdade e liberdade, sempre compreendidos como conceitos relativos, ou seja, inseparáveis e indivisíveis, vale conferir esta passagem de Plekhanov, em um texto polêmico contra Bernstein: “Explicando as palavras de Hegel. "A necessidade só é cega na medida em que não é compreendida", Engels afirmava que a liberdade consiste "no domínio exercido sobre nós e sobre a natureza externa', domínio fundado no conhecimento das necessidades inerentes à natureza.” Engels desenvolveu este pensamento de forma suficientemente clara para aqueles que estão ao corrente da doutrina de Hegel, à qual ele se referia. Mas o mal consiste precisamente em que os kantistas modernos só fazem "criticar" Hegel, sem, contudo, estudá-lo. Não conhecendo Hegel, não podiam tampouco conhecer Engels. Eles faziam, ao autor de Anti-Durhring, a objeção que não há liberdade onde há submissão à necessidade (...) Mas a filosofia de Marx(...) não se diferencia, entretanto da teoria de Hegel na questão que nos ocupa, a saber, a da relação entre a liberdade e a necessidade. Todo o problema reside em saber o que é preciso entender exatamente por necessidade(...). Uma necessidade, por assim dizer condiciona. É preciso que respiremos, se queremos viver, é preciso usar um medicamento se nos queremos livrar de uma doença e assim por diante(...) Se nos colocamos sob o ponto de vista da "crítica neokantista" de Marx, é preciso admitir que, nesta necessidade condicional, existe também um elemento de submissão. O homem seria mais livre se pudesse satisfazer suas necessidades sem dispender nenhum esforço. Ele se submete à natureza, mesmo quando a obriga a servi-lo. Mas esta submissão é a condição de sua libertação: submetendo-se à natureza, aumenta com isto seu poder sobre ela, ou seja, sua liberdade. Seria o mesmo no caso onde a produção social estivesse organizada de forma racional. Ao se submeter às exigências da necessidade técnica econômica, os homens poriam termo a este regime insensato que faz com que sejam dominados por seus próprios produtos, ou seja, aumentariam formidavelmente sua liberdade. Aqui também sua submissão tornar-se-ia a fonte de sua libertação. E não é tudo. Afeitos à ideia de que o pensar está separado do ser por um abismo, os "críticos" de Marx só conhecem uma única nuança da necessidade: utilizando ainda uma vez os termos de Aristóteles, eles representam a necessidade unicamente como uma força que nos impede de agir segundo nosso desejo e que nos obriga a fazer o que é contrário a ele. Tal necessidade está, com efeito, em oposição à liberdade e não pode deixar de pesar sobre nós. Mas é preciso não perder de vista, tampouco aqui, que uma força que se apresenta ao homem como força exterior de coerção indo de encontro a seu desejo, pode, em outras circunstâncias apresentar-se a ele sob aspecto totalmente diferente”. (grifo nosso) (PLEKHANOV, George. Os Princípios fundamentais do Marxismo.