CARNAVAL

63 Grandes desfiles da história – parte III: Salgueiro 1993

No terceiro e último episódio da série especial deste mês de fevereiro, Tuta do Uirapuru viaja do Pará ao Rio de Janeiro relembrando o desfile campeão da Acadêmicos do Salgueiro em 1993.

Escrito en OPINIÃO el

“Explode coração / Na maior felicidade / É lindo meu Salgueiro
Contagiando e sacudindo esta cidade”

Fosse, esta série, sobre os “que eu amo”, o desfile de hoje não seria sequer cogitado para um artigo. Com um refrão chiclete, de rima pobre e melodia marcheada, o samba composto por Demá Chagas, Arizão, Celso Trindade, Bala, Guaracy e Quinho está longe de agradar quem é do ramo. O pessoal canta e toca, com aquele prazer de um músico de churrascaria ao atender o pedido: “toca Raul!”.

Em relação às fantasias e alegorias, o esmero protolocar do Salgueiro, sem nada que saltasse aos olhos. No quesito evolução, a ala que vinha à frente da bateria se apresentou extremamente dispersa, outras alas do setor final sofreram invasões, e houve certa correria ao final, para que o desfile pudesse ser concluído dentro do tempo previsto, evitando-se punições. Isso só pelo que se pode constatar pela transmissão da TV.

Mas, porém, contudo, entretanto, quem, em sã consciência, teria coragem de “alfinetar” a maior catarse já testemunhada pela Avenida Marquês de Sapucaí? Sim, quem me acompanha sabe que, nas semanas passadas, já usei esse termo para me referir aos desfiles de Beija-flor, em 1989, e Estácio de Sá, em 1992. Mas a verdade é que a coisa atingiu seu ápice naquela noite de 22 de fevereiro de 1993, de maneira que o que se viu não se repetiria pelos próximos 29 carnavais. E muito dificilmente se repetirá.

Aliás, o Salgueiro desfilou na mesma posição da Estácio de Sá: terceira escola da segunda noite de desfiles. Até hoje, é uma espécie de “horário-nobre” para as escolas de samba, porque o público já está aquecido, e ainda não está cansado.

Naqueles tempos, os sambas-de-enredo ainda faziam parte do cotidiano carioca às vésperas do carnaval, e o do Salgueiro já ra um dos mais populares. Havia muita expectativa sobre o desfile, até porque a escola amargava um grande período sem conquistas (o último título fora conquistado em 1975, com "O segredo das minas do Rei Salomão", de Joãosinho Trinta).

Porém, o samba na boca do povo não é garantia de nada. Que o diga a Mangueira, que amargou um 11º lugar em 1994, com "Atrás da verde e rosa só não vai quem já morreu", de Ilvamar Magalhães. Os mais desavisados, provavelmente conhecem o samba e acreditam que a verde-e-rosa foi campeã naquele ano, tamanha a popularidade conquistada pela canção.

Voltando à vaca fria: a ideia de Mário Borriello era reproduzir na avenida o sonho de milhares de brasileiros que saíram do norte e nordeste em busca do sonho do Eldorado no sul do país. Mais especificamente, daqueles que vieram pelo mar, nos anos 30 e 40 do século passado, embarcados nos navios popularmente conhecidos como “Ita” (pedra, em tupi-guarani), tema já explorado por Dorival Caymmi na canção que inspirou o título do enredo salgueirense.

A deficiência nas malhas aérea e rodoviária depositava nos navios a vapor “Itaboré”, “Itaporan” e afins, a responsabilidade pelo transporte daqueles migrantes. Os “Ita” partiam de Belém e contornavam o litoral brasileiro, recolhendo, a cada capital, novos sonhadores, com destino à Cidade Maravilhosa.

A viagem do Salgueiro proporcionou, na avenida, a exploração de uma imensa simbologia, desde o Círio de Nazaré, representado no carro abre-alas, até a praia de Copacabana, no destino final. Entre os extremos da viagem, todo o nordeste se descortinou:  dividido em 37 alas e 12 alegorias, o impressionante contingente de 5500 pessoas contribuiu para a representação do bumba-meu-boi e dos tradicionais azulejos do Maranhão; das rendas e jangadas do Ceará; das salinas do Rio Grande do Norte e do Galo de Barcelos, símbolo da capital potiguar; do frevo e do maracatu de Pernambuco; dos reisados e da cana-de-açúcar das Alagoas; das vaquejadas e do cangaço, em Sergipe; da culinária, do candomblé e dos berimbaus na Bahia.

O enredo era dividido em três partes: “A partida”, tratando da emoção da despedida do migrante, de sua terra natal; “Os Brasis”, descrevendo os hábitos e culturas regionais; e “A Integração” do migrante ao Rio de Janeiro, sintetizado na letra do samba como a “terra do samba, da mulata e futebol”.

Ao chegar a seu destino, o migrante se apaixona pelo carnaval e, claro, pelo Salgueiro. O desfile se encerrava com uma reprodução da arquibancada do sambódromo, da Praça da Apoteose, e da própria avenida, com o Salgueiro desfilando.

A agremiação levou para a avenida um extenso rol de nomes conhecidos (quem tem mais de 40 aninhos certamente se lembrará de todos eles): Ei Johnson, Gerson Brenner, Eduardo Galvão, Jorge Benjor, Fernanda Keller, Lúcio Mauro, Verônica Castiñeira e Márcia Dornelles, entre outros.

O comando dos 300 ritmistas coube a Lourival de Souza Serra, o Mestre Louro. Melquisedeque Marins Marques era o puxador do samba. Mais conhecido como Quinho, o mesmo que assina a obra. O casal Vanderli e Taninha apresentou o pavilhão da escola.

O fato é que, mesmo com os flagrantes problemas de evolução e a letra do samba, de poesia duvidosa, ninguém, em sã consciência, acreditava que o título pudesse escapar das mãos da vermelho-e-branco. 

A apuração revelou 29 notas máximas, e um único 9,5, no quesito harmonia. A senhora Denira Rosário não viu tanta gente cantando o samba mais cantado da história do carnaval. Mas ela poderia ter dado um 7,5, e nem assim conseguiria “evitar a inevitável” conquista salgueirense, depois de 18 anos.

Infelizmente, a alegria daquele desfile não se reflete no descaso do atual desgoverno federal para com o Nordeste. Bolsonaro, o diplomata, costuma se referir aos nordestinos como “paraíbas”, “paus-de-arara”, “cabeça-chatas”, etc. Já foi flagrado em reunião ministerial determinando expressamente o não envio de recursos federais para os estados do Nordeste, governados por opositores, ignorando, incluísse, a existência de seus eleitores na região.

Recentemente, demonstrou mais uma vez sua absoluta ignorância, desta feita em relação a Padre Cícero, um ícone local, com raízes no Ceará.

Ceará, aliás, também ignorado por outro pleiteante ao Palácio do Planalto, Sérgio Moro, a “segunda-via do bolsonarismo”, que se referiu a um inexistente “agreste cearense”.

Juntos, os dois agregam as esperanças de um terço do eleitorado brasileiro.

É isso aí o que de melhor temos para hoje, ao menos para esse terço infeliz de nossa população.

E, aconteça o que acontecer nas eleições de outubro, teremos que continuar convivendo com essa gente em 2023, 2024, 2025, se quisermos continuar lutando pelo bem de nosso país... 

Vai passar.

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