CARNAVAL

Grandes desfiles da história – Parte II: Estácio de Sá, 1992

Seguindo a série especial neste mês de fevereiro, Tuta do Uirapuru homenageia o centenário da Semana de Arte Moderna relembrando o desfile campeão da Estácio de Sá em 1992

Ilustração: DGC.
Escrito en CULTURA el

“Me dê, me dá, me dá me dê / onde você for, eu vou com você”.

Com essa referência ao poema modernista “Pronominais”, de Oswald de Andrade, os compositores Djalma Branco, Déo, Maneco e Caruso transformaram em versos a ideia dos carnavalescos Mário Monteiro e Chiquinho Spinoza para a comemoração dos 70 anos da Semana de Arte Moderna, em 1992, no enredo “Paulicéia desvairada, 70 anos de modernismo no Brasil”, apresentado pela Estácio de Sá, no carnaval de 1992.

Apesar de haver sido fundada em 27 de fevereiro de 1955, a agremiação do Morro de São Carlos, no Rio de Janeiro, herdou a primazia da Deixa Falar, fundada por nomes do calibre de Ismael Silva, em 12 de agosto de 1928, sendo reconhecida pelo IPHAN como a escola de samba mais antiga do Brasil e, desde 2011, comemora seu aniversário em 12 de agosto.

Resultado da fusão de Cada Ano Sai Melhor, Recreio de São Carlos e Paraíso das Morenas, desfilou como Unidos de São Carlos até 1983, quando foi campeã do grupo de acesso. A partir de 1984, o primeiro ano do Sambódromo, adorou o nome do fundador da capital fluminense.

Estreou no grupo principal em 1968, permanecendo até 1972. Retornou em 1974, e ficou até 1977, sempre em posições modestas. Após nova e efêmera passagem em 1982, voltou para ficar em 1984. Em 1987 conseguiu seu melhor resultado até então, ficando entre as seis primeiras colocadas com “O Tititi do Sapoti”, irreverente enredo sobre a história da fruta utilizada para a fabricação de gomas de mascar, que levantou a avenida, e seria reeditado 20 anos depois, sem o mesmo sucesso.

Dois quintos lugares, em 1990 e 1991, pareciam haver garantido à agremiação o necessário respeito, para que deixasse de ser vista como figurante da festa. Em 1992, entretanto, poucos acreditavam que alguém pudesse impedir o tricampeonato da Mocidade Independente de Padre Miguel, com a plástica “high-tech” de Renato Lage, o bolso aberto do bicheiro Castor de Andrade, e um samba lembrado até hoje (“sonhar não custa nada / e o meu sonho é tão real...”).

Mas os ventos foram favoráveis à Estácio já no sorteio da ordem dos desfiles: terceira a desfilar, na segunda-feira de carnaval. Um horário bem nobre, digamos assim. O gelo já foi quebrado pelos desfiles do domingo, o público já foi esquentado pelas primeiras escolas da segunda-feira, e tá todo mundo doidinho pra sacolejar o “derrière”.

Os 4000 foliões não decepcionaram. Ao som dos 310 ritmistas, comandados por Mestre Ciça, ainda em atividade, e do samba puxado por Dominguinhos do Estácio, falecido recentemente (fizemos uma coluna em sua homenagem, na ocasião), viu-se uma das maiores catarses já ocorridas na Sapucaí. O refrão, marcheadinho, caiu na boca do povo:

“Modernismo, movimento cultural / No país da Tropicália / Tudo acaba em carnaval”

Realizada no Teatro Municipal de São Paulo, nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, a Semana de Arte Moderna reuniu nomes como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Víctor Brecheret, Plínio Salgado, Anita Malfatti, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, Heitor Villa-Lobos, Tácito de Almeida, Di Cavalcanti e Agenor Fernandes Barbosa, e visava a construção de uma identidade nas manifestações artísticas brasileiras, pela valorização das raízes de nossa nacionalidade.

Na comissão de frente, 15 integrantes da Intrépida Trupe se apresentaram sobre pernas-de-pau, vestidos de arlequins, pierrôs e colombinas, em uma referência ao poema “Inspiração”, que abre a obra “Pauliceia Desvairada”, de Mário de Andrade.

A fachada do Teatro Municipal de São Paulo era reproduzida no carro abre-alas, que apresentou algumas falhas na iluminação, que podem ter contribuído para a perda de um ponto no quesito alegorias e adereços.

O jogador de futebol Roberto Dinamite sambava discretamente nas alas do primeiro setor. Márcia Gabrielle, Miss Brasil em 1985, era destaque no carro “Palácio floral entre luzes elétricas”. Maria Lata D’Água, uma ex-prostituta mineira, que fez história no carnaval desfilando com uma indefectível lata de 20 litros, cheia de água, sobre a cabeça, vinha à frente da bateria, ao lado da madrinha Monique Evans.

A simplicidade na plástica da escola, principalmente ao compararmos com o trabalho de Renato Lage na Mocidade, representava a vitória do samba no pé sobre as “super-escolas-de-samba-SA”, traduzida na imagem de Luciana Sargentelli, que se exibiu descalça sobre o tripé “O velho e o novo”, e saiu da Marquês de Sapucaí com os pés ensanguentados.

Aliás, Luciana havia sido retirada da frente da bateria, pela direção da escola, a poucos dias do desfile, sendo substituída, à revelia, pela modelo Monique Evans, mais lembrada por suas curvas do que, propriamente, pelo samba no pé. Contrariada, Sargentelli não se abalou, deu a volta por cima e roubou a cena no desfile.

As fantasias aludiam a obras modernistas, como Macunaíma, de Mário de Andrade, e as Bachianas, de Villa-Lobos. E foi da composição Bachianas brasileiras nº 2 que saiu a ideia para outra alegoria que marcou bastante o desfile: “O Trenzinho Caipira”. 60 crianças vinham no carro, ladeado pela ala das crianças da escola.

Outras alegorias trouxeram réplicas de esculturas de Brecheret e referências aos Bailes da Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM), fundada em 22 de dezembro de 1932.

O desfile ainda mencionou a revolução política e social promovida pela Semana, que teria eclodido no episódio da Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, e o Tropicalismo, que teria sido um resgate do modernismo.

E foi com uma alegoria coloridíssima, intitulada “moro num país tropical”, com direito ao transformista Erick Barreto personificando Carmen Miranda, e Antônio de Paula interpretando Chacrinha, que a Estácio de Sá encerrou seu desfile.

A ovação recebida na Praça da Apoteose era a confirmação de que o título era um sonho possível. Mas a Mocidade ainda iria desfilar e, de fato, pareceu ter tudo para conquistar o tricampeonato.

A escola de Padre Miguel, entretanto, perdeu pontos preciosos no samba-enredo, e a vermelho-e-branco de São Carlos conseguiu aquele que, até hoje, é seu único título no grupo principal. Em 1997, a escola seria rebaixada e, desde então, nunca mais se firmou entre as grandes, chegando a disputar o terceiro grupo em 2005. Nas três oportunidades em que desfilou no grupo principal (2007, 2016 e 2020), foi novamente rebaixada.

Para o carnaval de 2022, a escola anunciou a reedição do enredo de 1995, que celebrou o centenário do Clube de Regatas Flamengo, e vai tentar se apoiar na popularidade do clube para conseguir retornar ao grupo especial. Boa sorte ao povo do Estácio!

Enquanto isso, distante dos holofotes da Sapucaí, nossa cultura agoniza sob o comando do ex-Malhação Mário Frias. Após cortar mais de 95% dos cachês até então permitidos pela Lei Rouanet, ele viajou para os EUA para, supostamente, discutir projetos culturais com Renzo Gracie, lutador brasileiro de jiu-jitsu. O passeio, com direito a classe executiva, custou, ao menos, R$ 39 mil aos cofres públicos.

Se a mamata parece muito longe de acabar, a cultura brasileira entrou mesmo numa fria.

Vai passar.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.