Grandes desfiles da história – Parte I: Beija-Flor de Nilópolis, 1989

Inaugurando uma série especial neste mês de fevereiro, Tuta do Uirapuru relembra aquele que, para muitos, é o maior desfile de uma escola de samba em todos os tempos

Ilustração: DGC
Escrito en CULTURA el

Por Estevan Mazzuia *

“Sai do lixo a nobreza / Euforia que consome
Se ficar o rato pega / Se cair o urubu come”
 

João Clemente Jorge Trinta transpôs as barreiras de seu universo. Não há cidadão, com mais de 30 anos, que não trace o estereótipo de carnavalesco a partir de Joãosinho Trinta, ainda que odeie a festa popular. 

O ano era 1989. A genialidade de Joãozinho já havia estado a serviço do Salgueiro, rendendo um bicampeonato à escola, em 1974/1975. João foi para a Beija-flor em 1976, e fez da escola, até então uma agremiação de pretensões limitadas, tricampeã nos carnavais de 1976/77/78. Mais dois títulos vieram em 1980 e 1983, contribuindo para que a escola de Nilópolis se tornasse conhecida como “A Deusa da Passarela”, “Maravilhosa e Soberana”. 

Com “Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia”, a azul-e-branco buscava a conquista que já não vinha havia cinco anos, portanto. 

Não se sabe ao certo de onde João tirara a inspiração para o enredo. Uma elegante mendiga que vira em Londres em 1988? O musical da Broadway “Les Misérables”? Os elogios à estética rústica do desfile campeão da Vila Isabel, no ano anterior, que não lhe havia agradado? 

Para Joãosinho Trinta, o desfile de uma escola de samba nada mais era que uma grande Ópera de Rua. Com a justificativa de que “quem gosta de miséria é intelectual, pobre gosta de luxo”, o carnavalesco levaria para a Sapucaí o contraste entre o luxo das elites e a pobreza dos mendigos que vivem no meio do lixo. Era uma resposta àqueles que criticavam o excesso de luxo em seus desfiles. 

Às vésperas do carnaval, um revés: a Arquidiocese do Rio de Janeiro obteve uma decisão judicial que proibia a escola de apresentar seu carro abre-alas, que trazia uma escultura do Cristo Redentor trajando farrapos. 

João não se abateu. Na manhã de 07 de fevereiro de 1989 a Beija-flor entrou na Sapucaí com seu carro abre-alas e o Cristo Mendigo, totalmente coberto por um grande saco de lixo preto, sustentando uma faixa com os dizeres: “Mesmo Proibido, Olhai Por Nós”. Começava, assim, o maior desfile de escola de samba de todos os tempos. 

"Atenção mendigos, desocupados, pivetes, meretrizes, loucos, profetas, esfomeados e povo da rua... Tirem dos Lixos deste imenso País, restos de luxo e façam a sua fantasia e venham participar deste grandioso Bal Masqué!". Com esses dizeres na segunda alegoria, a Beija-flor convidava para a grande confraternização que promovia. O luxo seria tirado do lixo. 

Os diretores da escola usavam uniformes nas mesmas cores dos profissionais da Comlurb, empresa responsável pela limpeza das vias públicas cariocas. Uma imensa ala de foliões trajados de mendigos abria o cortejo, atrás da comissão de frente. 

Seguiu-se uma profunda crítica aos contrastes sociais de um país no qual extrema pobreza e extrema riqueza convivem em aparente tranquilidade e permanente tensão. 

Joãosinho Trinta via o mapa do Brasil como um coração invertido, com os contornos de uma grande bunda, com muita sujeira a ser expelida, que somente as águas do Amazonas e do Prata poderiam lavar. Ou a energia do povo, tão logo tomasse consciência de sua força e valor. 

Era necessário limpar todo o lixo físico, mental e espiritual do Brasil, onde o luxo de uns poucos é responsável pela calamidade de muitos. O lixo do luxo seria escancarado. 

Passo a resumir os aspectos ressaltados pelo desfile, que reuniu 4500 foliões: 

PERÍODO DAS TREVAS: o primeiro setor comparava a miséria da Europa medieval com a miséria brasileira atual; segundo o enredo, enquanto apenas uns poucos senhores feudais ostentavam riqueza na era medieval, muitos brasileiros tornaram-se ricos ilícita e desonestamente, causando a degradação da maior parte da população brasileira. 

LIXO DAS IGREJAS: crítica à riqueza adquirida pela exploração da fé e a promessa da salvação das almas. Infelizmente, muito atual. 

LOUCURA: desequilíbrio, fome e miséria enlouquecendo o povo; mazelas causadas por gente louca, diga-se, que dirigiu e dirige o mundo, causando guerras e gastando fortunas com o derramamento de sangue. O setor trazia a representação dos quatro Cavaleiros do Apocalipse. 

LIXO DO SEXO: o enredo abria espaço ao sadismo, às inversões e às perversões sexuais, trazendo uma alegoria que reproduzia uma sauna romana, com o ator Alexandre Frota e a atriz e apresentadora Sônia Lima como destaques. 

LIXO DA IMPRENSA: uma crítica ao sensacionalismo de uma parte irresponsável da imprensa; mas notícias também viravam lixo, e de pedaços de jornais e revistas os apanhadores de papel faziam suas fantasias para se integrarem ao grande baile. 

LIXO DA POLÍTICA: no futebol, ou na economia, grandes ladrões parecem anjos em meio a negociatas duvidosas. E todos pagam para assistir ao Oba-Oba do Planalto. A enorme quantidade de leis, decretos e pacotes é picada e jogada como confete pelos foliões. Jorge Lafond era o destaque da alegoria que fechava o setor, representando a “vedete do Planalto”. 

LIXO DOS BRINQUEDOS: tais quais pequenos exus, aos quais foi negado alimento, pivetes partem para a cobrança, lançando mão de lâminas ou tiros certeiros. Enquanto isso, armas e brinquedos violentos misturam-se a ingênuos trenzinhos e tambores, daqueles que ainda têm o que comer. Xuxa e as Paquitas eram os destaques no carro dos brinquedos. 

LIXO DA FEIRA: nas primeiras horas da manhã, as feiras-livres oferecem o melhor, para quem pode pagar; depois, há a xepa. Por fim, há o lixo da xepa. A alegoria trazia uma grande abóbora puxada por ratos. 

BANQUETE DOS MENDIGOS: todos se reúnem para um grande banquete, com restos de caviar, faisões, perus, peixes, lagostas, cascatas de camarões, queijos finíssimos, vinhos, whiskys, vodcas, champanhes e licores, tudo cercado por muitos ratos e urubus que, pacientemente, aguardam sua vez. Pínah era a destaque da alegoria. 

Ao final, uma alegoria trazia uma réplica do Chafariz da Cinelândia, no qual crianças se banhavam, como em um ato de purificação, cheios de esperança por um terceiro milênio melhor que, sabemos, infelizmente ainda não chegou. 

O desfile contagiou os servidores da Comlurb, que vinham atrás de todas as escolas, promovendo a limpeza da pista. Nenhum desfile havia lhes proporcionado tamanho engajamento: confundiram-se facilmente com os diretores da escola e sentiram-se parte da festa, como nunca antes. 

Mesmo promovendo uma verdadeira catarse na avenida, o título não veio. Beija-flor e Imperatriz empataram no topo da tabela, com 210 pontos. O desempate ocorreu em uma nota originariamente descartada, no quesito samba-enredo: João Máximo não gostou da letra do refrão do samba composto por Betinho, Glyvaldo, Zé Maria e Osmar, que fazia uma saudação às entidades de rua da umbanda (exus, pombas-gira, etc): 

“Leba, iaro, ôôôô / Ebó, iebará, laiá, laiá ô” 

Máximo justificou a nota 9 dessa maneira, em uma entrevista ao Jornal do Brasil: “uma escola não pode colocar milhares de pessoas na avenida cantando sem saber o quê. Esse negócio de africanidade nas letras é uma babaquice”. Mais tarde, ele se arrependeria dessa declaração. 

Justiça seja feita: ainda que Máximo tivesse data a nota máxima (trocadilho inevitável), o resultado não seria mudado. A escola de Nilópolis recebeu outras duas notas 9, em evolução e conjunto, que assumiriam prontamente a condição de fiel da balança. 

Para o desfile das campeãs, Joãosinho providenciou a confecção de três bonecos, simbolizando os três jurados que não atribuíram nota 10 à escola. 

O Cristo Mendigo retornou coberto, como no desfile oficial, mas sem a faixa. Desta vez, entretanto, seria descoberto pelos foliões, no meio da Sapucaí, para o êxtase de Fernando Pamplona, carnavalesco com quem Joãosinho Trinta havia trabalhado no Salgueiro, que comentava o desfile para a extinta TV Manchete, nitidamente emocionado: 

“Esse é um momento glorioso! Glorioso, gente! O povo aplaude e tem coragem... estão tirando o (saco) negro de cima do Cristo... acompanhem, pelo amor de Deus! Acompanhem, o povo em êxtase! Vocês jamais vão ver um espetáculo tão bonito, gente! Entra agora a polícia! Entra agora essa justiça fajuta! Entra agora! Entra agora, no meio do povo, se tiverem coragem! Impeçam o que o povo vê, o que o povo está mostrando! Impeçam, se tiverem coragem! (...) Que desonestidade proibirem uma beleza dessas...” 

Certa feita, comentei com um amigo, igualmente apaixonado por carnaval: a Beija-flor fizera o melhor desfile de todos os tempos. Mas o melhor desfile de 1989 havia sido o da campeã, Imperatriz Leopoldinense, absolutamente chapa-branca, exaltando o centenário da Proclamação da República, e vultos como Marechal Deodoro, Duque de Caxias e Princesa Isabel. Para minha surpresa, ele concordou com a afirmação absurdamente contraditória. Só quem viveu aquele carnaval pode entender o que isso significa. É um mistério, mas não mudo minha posição. 

Aliás, já comentei por aqui que o desfile de 1989 foi o melhor de todos os tempos, na minha opinião, e já relembrei outros desfiles daquele ano. Beija-flor, Imperatriz Leopoldinense e União da Ilha teriam sido campeãs, com tranquilidade, em qualquer outro ano, com as apresentações arrebatadoras que fizeram. Quis o destino que competissem entre si, e apenas uma fosse vitoriosa (a União da Ilha terminou em terceiro lugar). 

33 anos depois, o lixo persiste à nossa volta. Parece que as coisas só pioraram de 1989 para cá, a despeito de uma melhora experimentada na primeira década do terceiro milênio. 

Mas, a maior das desgraças, nem a criatividade de Joãosinho Trinta ousaria imaginar: sermos governados por um inepto que despreza e desrespeita seu povo, a ponto de se deixar filmar simulando a degustação de um espeto de frango com farofa em praça pública, fazendo mais sujeira do que um periquito, acreditando que o pobre brasileiro se identificaria com tal imundície.  

A sujeira está por todos os cantos, como jamais esteve antes na história deste país. 

A grande bunda descrita por Joãosinho Trinta está com seus intestinos abarrotados a nos cobrir, dia após dia, com as fezes da boçalidade que tomou conta do Brasil. 

Mas logo limparemos toda essa porcaria, e inverteremos a bunda-Brasil, de maneira que possamos vislumbrar apenas o grande coração a, finalmente, voltar a bater por cada um de nós. 

Vai passar. 

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.