PADRÃO

Kanye West e Bianca Censori: o que o caso do Grammy 2025 ensina sobre o patriarcado

Rapper teria pressionado a esposa a se despir no tapete vermelho; o episódio escancara a dinâmica do poder masculino na sociedade como um todo

Kanye West e Bianca Censori: o que o caso do Grammy 2025 ensina sobre o patriarcado.Rapper teria pressionado a esposa a se despir no tapete vermelho; o episódio escancara a dinâmica do poder masculino na sociedade como um todo.Créditos: Reprodução Redes Sociais
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O rapper Kanye West, de 47 anos, voltou ao centro das atenções no Grammy Awards 2025 ao protagonizar um episódio polêmico que gerou indignação entre o público presente e nas redes sociais.

Bianca Censori, esposa do artista, chegou ao tapete vermelho vestindo apenas um vestido transparente, cobrindo-se com um casaco de pele até o momento em que Kanye teria instruído que ela o removesse.

A cena gerou um impacto imediato e mobilizou a equipe da CBS, emissora responsável pela transmissão do evento, que temia reclamações de anunciantes e sanções por exibição de conteúdo inadequado ao vivo.

Segundo fontes do DailyMail.com, os organizadores do Grammy foram alertados poucos minutos após a chegada do casal e determinaram que eles deixassem o evento para evitar maiores problemas.

Leitor labial revela instruções "perturbadoras" de Kanye para Bianca

Um vídeo publicado pelo CBS Mornings no TikTok revelou um momento tenso entre Kanye e Bianca no tapete vermelho. A especialista em leitura labial Nicola Hickling, fundadora da LipReader, analisou as imagens e identificou comandos que o rapper teria dado à esposa antes da exposição.

De acordo com Hickling, Kanye teria dito: "Agora você está chamando atenção."

Bianca teria acenado afirmativamente, ao que Kanye continuou: "Faça um escândalo, eu direi que faz todo o sentido."

A revelação gerou uma onda de críticas contra o artista, acusado de manipular e expor sua esposa de forma degradante.

Essa atitude de Kanye reforça um padrão de comportamento controlador que ele já demonstrou em outros relacionamentos, incluindo seu casamento com Kim Kardashian.

O patriarcado e o controle sobre as mulheres no show business

O episódio não é um caso isolado. Ele ilustra como o corpo feminino é instrumentalizado para reforçar o status de homens poderosos dentro da indústria do entretenimento.

O que ocorreu no tapete vermelho do Grammy se conecta com um padrão histórico: a hipersexualização da mulher como espetáculo controlado por figuras masculinas influentes. Esse fenômeno não se restringe à cultura pop, mas se manifesta de diversas formas na sociedade.

Casos recentes mostram como homens poderosos se valem de sua influência para explorar e silenciar mulheres, perpetuando uma cultura de coerção e controle.

P. Diddy: abuso e cultura do silêncio

Sean "P. Diddy" Combs, um dos maiores nomes do Hip Hop, enfrenta múltiplas acusações de abuso sexual e violência contra mulheres. Segundo relatos, ele criou um ambiente de manipulação, onde jovens eram exploradas e silenciadas.

A verdade por trás da imagem pública de P. Diddy veio à tona na série documental "A Queda de P. Diddy", lançada em 1º de fevereiro na plataforma de streaming Max. A produção revela detalhes chocantes sobre as acusações contra o magnata do rap.

O documentário apresenta depoimentos de ex-funcionários, colegas e supostas vítimas, incluindo relatos de seu ex-assistente executivo, Phillip Pines, e da ex-namorada, Kat Pasion, que denunciam episódios de abuso e coerção sexual.

A série ainda expõe o medo e a relutância das vítimas em se manifestar, evidenciando a cultura de impunidade e silenciamento que protege agressores poderosos.

Assista ao trailer oficial

Jeffrey Epstein e a exploração sistêmica

Se Kanye West e P. Diddy mostram a face midiática do patriarcado, Jeffrey Epstein escancarou seu lado mais obscuro e criminoso.

O financista mantinha uma rede de tráfico sexual de menores, envolvendo políticos, empresários e celebridades. Durante décadas, Epstein garantiu sua impunidade com o apoio de figuras influentes, que acobertaram seus crimes.

Esse caso evidencia um aspecto central do patriarcado: o abuso sexual não é apenas um crime individual, mas parte de um sistema de exploração, no qual mulheres e meninas são tratadas como moeda de troca entre homens no poder.

Donald Trump: abuso e impunidade na política

Assim como Epstein, Donald Trump tem um longo histórico de acusações de assédio e abuso sexual.

Em uma gravação vazada de 2005, o ex-presidente dos EUA disse que podia "pegar mulheres pela genitália" porque, sendo rico e famoso, "podia fazer qualquer coisa".

Trump foi acusado de abuso por mais de 25 mulheres, mas utilizou sua posição de poder para desacreditar vítimas e normalizar sua conduta.

O caso de Trump reforça o padrão de impunidade que protege homens poderosos, permitindo que a violência contra mulheres seja relativizada.

Mulheres também reproduzem o patriarcado

Outro ponto crucial desse debate é que o patriarcado não é sustentado apenas por homens, mas também por mulheres que internalizam e reproduzem suas normas. Bianca Censori, ao aceitar esse papel e permanecer ao lado de Kanye West, não é necessariamente uma vítima passiva, mas uma participante que, consciente ou não, reforça a lógica patriarcal. 

Isso não significa culpabilizá-la, mas entender que muitas mulheres são levadas a acreditar que se submeter aos desejos masculinos é a única forma de obter sucesso, proteção ou reconhecimento.

O apoio de mulheres ao patriarcado pode ocorrer de diversas formas, seja por meio de discursos que reforçam normas tradicionais de gênero, pela defesa de políticas que limitam os direitos femininos ou pelo endosso de figuras e estruturas que perpetuam desigualdades. 

Figuras como a ativista conservadora dos EUA Phyllis Schlafly (1924-2016) ficou conhecida por liderar a campanha contra a Emenda dos Direitos Iguais (Equal Rights Amendment - ERA, do inglês), uma emenda constitucional que garantiria a igualdade de direitos entre homens e mulheres nos Estados Unidos. 

Phyllis argumentava que a ERA destruiria a família tradicional e obrigaria mulheres a trabalhar fora de casa. Schlafly foi uma das vozes mais influentes do conservadorismo feminino no século 20.

Na atualidade, a turma das mulheres que defendem o patriarcado nos EUA tem Marjorie Taylor Greene, congressista do Partido Republicano pela Geórgia e uma apoiadora ferrenha das políticas misóginas de Trump. 

Greene frequentemente endossa pautas que reforçam estruturas patriarcais, como a oposição ao aborto e a defesa da ideia de que mulheres devem ocupar papéis tradicionais dentro da família. Ela também se posiciona contra direitos LGBTQIA+, reforçando discursos que sustentam a divisão rígida de papéis de gênero.

Aqui no Brasil, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro tem desempenhado um papel significativo na política brasileira, especialmente no que diz respeito à participação feminina em partidos conservadores. Sua atuação é marcada por uma perspectiva que, embora promova a inserção das mulheres na política, mantém-se alinhada a valores tradicionais que reforçam estruturas patriarcais.

Em eventos do PL Mulher, braço feminino do Partido Liberal, Michelle enfatizou que as mulheres não buscam competir com os homens, mas sim auxiliá-los. Essa visão sugere uma complementaridade que, na prática, pode limitar a autonomia feminina e perpetuar a ideia de que o papel da mulher é secundário em relação ao do homem. 

Além disso, sua proximidade com figuras como Damares Alves, ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos do governo de Jair Bolsonaro, reforça uma agenda que valoriza a família tradicional e critica movimentos feministas que lutam por equidade de gênero. Essa postura contribui para a manutenção de uma ordem social que privilegia o patriarcado, ao desestimular a busca por direitos iguais e a desconstrução de papéis de gênero pré-estabelecidos.

Na França, a líder da extrema direita na França, Marine Le Pen adotou um discurso que, embora tenha elementos de empoderamento feminino (como sua própria ascensão na política), também reforça ideias nacionalistas e conservadoras que perpetuam desigualdades de gênero. Ela se opõe ao feminismo moderno e defende a preservação de "valores tradicionais".

A primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, adotou um discurso que exalta a família tradicional e a maternidade como pilares centrais da sociedade. Apesar de ser uma mulher no poder, suas políticas frequentemente reforçam a ideia de que as mulheres devem priorizar a maternidade em detrimento da carreira profissional.

Margaret Thatcher reforçou o patriarcado

Margaret Thatcher, primeira-ministra do Reino Unido entre 1979 e 1990, foi uma das figuras políticas mais influentes do século 20. Apelidada de "Dama de Ferro", sua trajetória rompeu barreiras para as mulheres na política, mas paradoxalmente, seu legado contribuiu para a manutenção do patriarcado e se opôs ao feminismo.

Apesar de ser a primeira mulher a liderar um dos países mais poderosos do mundo, Thatcher sempre se posicionou contra o movimento feminista. Ela rejeitava a ideia de que sua ascensão política fosse resultado da luta feminista, e acreditava que mulheres deveriam conquistar poder individualmente, sem reivindicações coletivas.

"Eu devo tudo ao meu esforço e ao meu mérito, não a cotas ou movimentos", dizia a ex-premiê.

Sua visão negava a importância das lutas feministas por direitos políticos e econômicos, ignorando o fato de que, sem décadas de mobilização, dificilmente uma mulher teria chegado ao cargo que ela ocupou.

Além de sua rejeição ao feminismo, suas políticas reforçaram estruturas patriarcais e aumentaram a desigualdade social, afetando especialmente as mulheres das classes trabalhadoras:

Cortes em políticas sociais: Thatcher implementou uma agenda neoliberal extrema, reduzindo investimentos em saúde, educação e assistência social, setores que empregavam muitas mulheres e eram fundamentais para mães trabalhadoras.

Enfraquecimento dos sindicatos: Ela liderou uma ofensiva contra os sindicatos trabalhistas, o que afetou diretamente as condições de trabalho de mulheres que dependiam dessas organizações para garantir direitos básicos.

Privatizações massivas: Ao transferir serviços públicos para empresas privadas, Thatcher reduziu o suporte estatal, tornando a vida mais difícil para mães solo e mulheres de baixa renda, que perderam acesso a moradias populares e assistência social.

Thatcher é um exemplo que vem sendo copiado por mulheres anti-mulheres a partir de seu "feminismo da meritocracia", uma visão individualista que ignora barreiras estruturais enfrentadas por outras mulheres. Ela demonstrava desprezo por mulheres que buscavam apoio do Estado ou de movimentos coletivos para avançar, sustentando um discurso que beneficiava o patriarcado ao manter a estrutura de privilégios masculinos intacta.

Seu governo também manteve um ambiente dominado por homens, sem incentivo para a ascensão de outras mulheres dentro do Partido Conservador. Ela raramente nomeava mulheres para cargos de alto escalão e nunca se posicionou a favor de pautas como igualdade salarial ou licença-maternidade ampliada.

Por que mulheres apoiam o patriarcado?

O apoio feminino ao patriarcado pode ser explicado por diversos fatores, como:

Socialização: Desde cedo, muitas mulheres são ensinadas a aceitar e até defender normas patriarcais.

Recompensas sociais: Mulheres que reforçam o patriarcado muitas vezes são vistas como exemplares e são premiadas com aceitação e prestígio dentro de suas comunidades.

Falsa sensação de proteção: Algumas acreditam que a submissão ao patriarcado as protege de desafios e riscos associados à independência e à autonomia.

Identificação com valores conservadores: Muitas mulheres enxergam na família tradicional e na obediência às normas patriarcais uma forma de preservar a ordem social.

Mesmo que algumas mulheres ocupem posições de poder, isso não significa automaticamente que estão desafiando as estruturas patriarcais. Muitas vezes, atuam dentro desse sistema reforçando as desigualdades e limitando os direitos de outras mulheres.

Violência contra mulheres no Brasil

Se no mundo do entretenimento e da política a misoginia se manifesta por meio do controle midiático e da exploração sexual, ou por meio do endosso feminino, a realidade para mulheres comuns é ainda mais brutal.

De acordo com o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2024 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os dados mais recentes sobre violência contra as mulheres no Brasil são alarmantes:

Feminicídios: Em 2023, foram registrados 1.467 casos de feminicídio, representando um aumento de 0,8% em relação a 2022. Este é o maior número desde a tipificação do crime em 2015.

Agressões decorrentes de violência doméstica: Houve 258.941 registros em 2023, indicando um crescimento em relação ao ano anterior.

Ameaças: Foram contabilizados 778.000 casos, um aumento de 16,5% em comparação com 2022.

Estupros e estupros de vulnerável: Ocorreu um aumento de 14,9% nos registros, totalizando 34.000 casos no primeiro semestre de 2023. Destaca-se que 70% das vítimas eram meninas de até 13 anos.

Importunação sexual: Os casos cresceram 48,7%, ultrapassando 41.000 registros.

Assédio sexual: Houve um aumento de 28,5%, com mais de 8.000 casos registrados.

Perseguição (stalking): Os registros aumentaram 34,5%, totalizando mais de 77.000 casos em 2023.

Esses números evidenciam uma preocupante escalada na violência contra as mulheres no Brasil, ressaltando a urgência de políticas públicas eficazes para prevenção e combate a essas agressões.

O patriarcado não tem etnia, classe ou gênero

Casos como os de Kanye West, P. Diddy, Jeffrey Epstein e Donald Trump mostram como o patriarcado opera além da individualidade dos agressores. São exemplos da maneira como as estruturas de dominação patriarcal se manifestam em diferentes classes sociais, etnias e até mesmo através de mulheres que reforçam essas dinâmicas.

De acordo com Silvia Federici, uma das maiores teóricas do feminismo marxista, a exploração da mulher dentro do capitalismo patriarcal não se dá apenas pela violência direta dos homens, mas por um sistema de controle sobre seus corpos, seu trabalho e sua reprodução social. 

Os lamentáveis episódios de homens negros e brancos descritos neste texto não são diferentes do que muitas mulheres enfrentam diariamente, ainda que de maneira menos espetacularizada: a redução da mulher a um objeto a ser exibido, desejado e negociado dentro de relações de poder assimétricas.

Outro ponto essencial é que o patriarcado e o capitalismo operam juntos para lucrar sobre os corpos femininos. Como argumenta Nancy Fraser, o capitalismo contemporâneo se apropria das pautas feministas ao mesmo tempo em que reforça a exploração das mulheres em novas formas. 

Muitas vezes, discursos identitários limitam o debate sobre o patriarcado ao homem branco europeu, como se as relações de gênero nas comunidades racializadas ou nas classes populares fossem mais "naturais" ou menos opressoras. 

No entanto, como aponta bell hooks, o patriarcado se manifesta de maneiras diferentes em grupos racializados, mas continua sendo uma estrutura de dominação que transcende raça e classe social.

Angela Davis também já denunciou: o patriarcado também opera dentro das lutas de grupos oprimidos, frequentemente sacrificando as mulheres pelo benefício dos homens que querem ascender socialmente.

O caso Kanye West e outros nos ensinam algo maior

Os casos de Kanye, Diddy, Epstein e Trump são um sintoma de algo maior: a persistência do patriarcado dentro das elites culturais e econômicas e sua capacidade de se renovar e se adaptar. Ainda que muitas vezes se imagine que o feminismo tenha "vencido" em certos aspectos, a realidade mostra que o controle sobre os corpos femininos segue sendo um dos principais instrumentos de poder masculino.

O patriarcado se adapta e se reinventa – O mesmo sistema que antes impunha a castidade feminina agora fatura com a hipersexualização das mulheres. Mas a lógica subjacente é a mesma: o corpo da mulher não pertence a ela.

Homens de todas as raças e classes podem ser agentes do patriarcado – Homens brancos e negros, pobres e ricos usam o próprio gênero para controlar, explorar e objetificar mulheres.

Mulheres também reforçam o sistema – Muitas vezes, seja por sobrevivência ou por acreditarem que isso lhes trará benefícios, mulheres participam da manutenção do patriarcado.

O capitalismo se aproveita do patriarcado – A exploração feminina não acontece isoladamente; ela é parte de uma engrenagem que transforma a opressão das mulheres em espetáculo, entretenimento e lucro.

O feminismo marxista nos ensina que a libertação das mulheres só será possível com a destruição das estruturas que as transformam em mercadoria – seja na cultura pop, na política ou na vida cotidiana.

 

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