AGOSTO LILÁS NA FÓRUM

"Na hora de fazer não gritou", frase ouvida por mulheres vítimas de violência na hora do parto

Entre as várias formas de violência contra a mulher, a obstétrica ainda precisa ser melhor debatida e é objeto de pesquisa de Ligia Moreiras e uma bandeira do mandato da deputada Talíria Petrone; ambas falaram com exclusividade com a Fórum

Créditos: Pixabay - Um em cada quatro mulheres é vítima de violência na hora do parto
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A violência contra a mulher é um tema que envolve pessoas de todos os gêneros, classe sociais, etnias, orientação sexual ou opções políticas. É uma questão que diz respeito à toda a sociedade brasileira. Para abordar vários aspectos desse tema, a Fórum publica uma série especial de reportagens que será veiculada ao longo deste mês.

Entrevistas com autoridades, parlamentares, ativistas, pesquisadores e estudiosos sobre as diversas facetas da violência contra a mulher: doméstica, sexual, obstétrica, política, patrimonial, psicológica e moral; dicas de livros, séries e filmes; pesquisas, estudos e levantamentos.

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Violência na hora do parto atinge 1 em cada 4 brasileiras

EBC

O período de gravidez é uma fase celebrada na vida de muitas pessoas e em várias ocasiões é até mesmo romantizada, como se não tivesse dores e dificuldades. Nos últimos anos, a partir da atuação de movimentos feministas e em defesa dos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres, a sociedade brasileira passou a discutir um aspecto sombrio das gestações, partos e pós-partos, que por muito tempo ficou nas sombras: o quanto as mulheres e seus familiares são vítimas de violência obstétrica.

Em 2010, uma pesquisa nacional realizada pela Fundação Perseu Abramo mostrou que 25% das mulheres que tiveram partos normais (nas redes pública e privada) relataram terem sofrido maus-tratos e desrespeitos durante o trabalho de parto, parto e/ou pós-parto imediato. As mais comuns, segundo o estudo, são gritos, procedimentos dolorosos sem consentimento ou informação, falta de analgesia e até negligência.

Intitulado “Mulheres brasileiras e Gênero nos espaços público e privado”, o estudo revela que no momento do parto mulheres vítimas de violência escutam frases desrespeitosas como:

  • "Não chora não que ano que vem você está aqui de novo"
  • "Na hora de fazer não chorou, por que está chorando agora?"
  • "Na hora de fazer não chamou a mamãe, por que está chorando agora?"
  • "Se gritar eu paro agora o que estou fazendo, não vou te atender"
  • "Se ficar gritando vai fazer mal pro seu neném, seu neném vai nascer surdo"

Os dados dessa pesquisa sensibilizaram a opinião pública e lançaram novo olhar sobre o tema, dando novo rumo às pesquisas acadêmicas e ações do movimento de mulheres. Mostraram que a violência institucional está frequentemente presente na atenção ao parto e representa um grave problema de saúde pública no Brasil.

Em março de 2012, foi ao ar um teste de violência obstétrica que foi respondido de forma voluntária por duas mil mulheres e confirmou os resultados da pesquisa da Fundação Perseu Abramo. Desse teste nasceu o documentário “Violência Obstétrica – A voz das brasileiras” com depoimentos gravados pelas próprias mulheres sobre os mais variados tipos de humilhação e procedimentos invasivos vividos por elas no momento do parto.

Não há lei contra violência obstétrica

Agência Câmara (Zeca Ribeiro) - Talíria Petrone 

Atualmente, não existe legislação federal específica sobre violência obstétrica. Faltam também mecanismos de rastreamento de dados e informações sobre o tema. O enfrentamento a esse tipo de violência contra a mulher é uma das principais bandeiras do mandato da deputada federal Talíria Petrone (Psol-RJ), que é uma das autoras do Projeto de Lei 878/2019, que trata da humanização da assistência à mulher e ao recém-nascido durante a gestação e o pós-parto.

Em entrevista exclusiva à Fórum a parlamentar comenta que a matéria é uma das mais caras para ela, que atualmente integra a Comissão Especial sobre Violência Obstétrica e Morte Materna. O trabalho do colegiado pretende identificar boas práticas no combate à violência obstétrica, debater e propor políticas públicas sobre o tema, acompanhar o aumento de denúncias e a alta taxa de morte materna no Brasil, além de conceituar a violência obstétrica e seus efeitos na preservação dos direitos das mulheres.

São considerados violência obstétrica situações como o abuso físico e verbal de mulheres por parte de profissionais de saúde e a falta de acesso a serviços e direitos essenciais, como o pré-natal e um acompanhante durante o parto.

Talíria observa que a violência obstétrica gera marcas profundas em muitas mulheres no momento de parir, um dos momentos mais importantes da vida de muitas de nós, mas que para tantas outras se torna um momento de muita tristeza e dor. "Muitas, infelizmente, morrem pela negligência no atendimento, em especial mulheres negras que têm menos acesso ao SUS", lamenta. 

"Não pode ser assim, precisa ser diferente. Nenhuma mulher pode ter seu direito a um parto e um pós parto dignos negado. Sem dúvida o perfil conservador [ do Congresso Nacional] dificulta o avanço desse e de todos os demais projetos que são para garantir nossos direitos. Inclusive tem muitos aqui e fora da Câmara que questionam o termo violência obstétrica, mas nós mostramos com dados e argumentos que é o termo que melhor se aplica aos casos absurdos que acontecem em todo o país, inclusive destruindo vidas. Mas seguimos fazendo o debate até conseguirmos avançar para aprovar o nosso projeto e outros que vão na mesma linha", diz a parlamentar.

Papel das entidades de classe

Acervo pessoal

A violência obstétrica é um dos temas de estudo de Ligia Moreiras, doutora em saúde coletiva e em ciências, criadora do projeto "Cientista que virou mãe" e uma das produtoras do documentário "Violência Obstétrica – A voz das brasileiras” que está disponível nesta matéria. Ela conversou com a Fórum sobre o tema e fez um resgate histórico do enfrentamento a esse tipo de violência. 

Ligia observa que a falta de uma lei específica para enfrentar a violência na hora do parto não é explicada apenas pelo perfil conservador do Parlamento. Ela alerta que, em geral, o campo progressista tende a focar as explicações na constituição da representatividade política, o Senado e a Câmara. Mas nesse caso da violência obstétrica é preciso olhar também para os Conselhos de Classe, como o Conselho Federal de Medicina (CFM), por exemplo. 

"É um órgão extremamente corporativista, que tem uma articulação política forte, que defende seus interesses mercadológicos e que, infelizmente, trata as vidas humanas como produtos em todas as dimensões e também na dimensão da assistência ao parto e nascimento, na ginecologia e obstetrícia", descreve.

Ela relembra que ativistas e pesquisadoras da área obstétrica denunciaram o apoio que o CFM ofereceu ao governo de Jair Bolsonaro. "É um conselho retrógrado, que está em defesa dos seus interesses corporativos, e não está em defesa das vidas das pessoas", comenta. "Basta ver a falta de condução ética, científica, com relação às imunizações e a vacinação contra o Covid-19", completa.

Luta pela sobrevivência

Ligia faz um resgate histórico dos últimos anos das lutas pelos direitos da mulheres, inclusive contra a violência na hora do parto. Ela observa que desde o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, houve uma paralisação de todos os avanços que vinham sendo conquistados.

"Esses avanços, especificamente com relação à assistência ao parto e nascimento, à humanização do parto, a luta contra a violência obstétrica, foram avanços diretamente relacionados à luta das mulheres, à luta feminista, militante, ativista. Nós mulheres íamos para as ruas pelo direito de parir em casa, pelo direito de ter o parto humanizado e não violento, com a frase 'chega de parto violento para vender cesárea'", descreve. 

Ela relembra que houve um avanço muito grande nos governos petistas com uma série de resoluções, de emendas, de campanhas e projetos como a Rede Cegonha que melhoraram muito a assistência ao parto e nascimento do Brasil. 

"Agora é hora de a gente não só correr para recuperar esse tempo de paralisação o ritmo que a gente vinha em 2014 como de construir políticas que permaneçam após quatro anos. A gente vive em um cenário político muito instável no Brasil e precisa criar condições políticas, desde candidatas mulheres que estejam por dentro dessa pauta até criação de leis consistentes que nos deem esse respaldo",  observa. 

Ligia comenta ainda que nessa luta pelo enfrentamento da violência obstétrica, a sociedade civil é peça-chave a partir de ações como pressão junto aos representantes no Congresso, ocupação das ruas e atuação nas redes sociais.